A arrancada veloz do Galaxie que deixou o bispo em pânico

'O Dom Mílton se locomovia com um vistoso Ford Galaxie 1975, equipadão com motor V8 e câmbio manual de três marchas'

ford galaxie
Por Douglas Mendonça
Publicado em 18/06/2018 às 20h30

O “causo”, como todos os que conto nessa coluna, foi real e aconteceu no final dos anos 70. Hoje é uma história engraçada de ser lembrada, mas, na época, tirou o sono do meu amigo Ruivo, aquele do Karmann Ghia TC que parou ao lado de um bueiro e ao abrir a porta e descer, caiu lá dentro, lembram-se? Quem leu esse causo anterior dele, vai se lembrar que ele não era desses caras sortudos. Muito pelo contrário, ele era mesmo muito azarado. Mas, vamos lá a esse novo causo desse grande amigo que raramente estava de bem com a sorte.

Final dos anos 70, estudávamos na Faculdade de Engenharia Industrial, FEI. E sabe como é: vida de estudante classe média é sempre uma tremenda dureza. No final das contas nossos pais pagavam a cara faculdade e nossos custos de alimentação e vestimenta, e não sobrava quase nada para a vida comum. Pois bem, do nosso grupo de amigos, o Ruivo era sempre o que estava mais duro que os demais e procurávamos, entre os amigos, ajudá-lo no que era possível, no que estava ao nosso alcance.

Eis que surgiu uma oportunidade: no prédio onde morava um de nossa turma, morava também o motorista e uma especie de secretário de um bispo evangélico e de sua família. Esse motorista tinha uma viagem urgente para fazer ao interior de Minas Gerais para resolver um problema grave de família. Por isso, ele precisava de alguém que o substituísse por cerca de cinco dias. E pagava bem!

Todos nós nos interessamos pelo trabalho, mas sabíamos que o Ruivo era o mais necessitado. Por isso, decidimos que ele ficaria com a vaga. Lá foi o Ruivo na entrevista com o tal bispo Dom Mílton. Ele foi aceito para substituir o tal motorista/secretário. Era um cara bem apresentável, tinha 1,85 metro de altura e um bom físico, fato que interessou ao Dom Mílton, afinal de contas, ele seria também uma especie de guarda-costas.

Nosso amigo substituto Ruivo iniciou sua jornada de trabalho numa quinta- feira e descobriu que o trabalho do motorista/secretário ia muito além do que ele imaginava. Até as gaiolas dos canários e do papagaio do bispo ele teria que cuidar. E olha que o apartamento do bispo Dom Mílton não era dos menores no Jardins, região chique aqui de São Paulo.

O bispo Dom Mílton tinha dois filhos adolescentes e o Ruivo deveria buscá-los na escola no fim da tarde. Um pouco mais tarde deveria ir buscar o bispo  em seu Templo de Fé, localizado no bairro da Liberdade, bem vizinho ao centro antigo de São Paulo. Depois de cuidar da passarinhada, papagaio, dos cachorrinhos de estimação da família, Ruivo partiu para seus primeiros afazeres de motorista/secretário.

O Dom Mílton se locomovia com um vistoso Ford Galaxie 1975, equipadão com motor V8 e câmbio manual de três marchas com a alavanca de mudanças embaixo do volante. Esse é o enorme veículo que o Ruivo se locomoveria na cidade de São Paulo nos próximos cinco dias, para cumprir suas missões. Foi buscar os garotos adolescentes, levou-os para casa, e depois foi para a Liberdade buscar o patrão.

Ford Galaxie do bispo tinha motor V8
Foto ilustrativa

Ao chegar ao templo muito movimentado, estacionou o Galaxie em um local estratégico, reservado ao bispo. Dentro da igreja, que estava lotada, foi ao encontro do patrão e, surpreso, recebeu do Dom Mílton um revolver calibre 38 pois deveria retirar do templo uma boa quantia em dinheiro fruto de donativos dos fieis. Esse dinheiro seria colocado no porta-malas do Galaxie e o Ruivo faria a escolta do Bispo até o carro para que eles retornassem a casa do religioso em segurança. O Ruivo nos contou depois, que ele nunca havia pego em uma arma e que não tinha a mínima noção de como deveria ser usada em caso de necessidade.

“Não sei se segurava aquele troço pelo cano ou pelo cabo e muito menos de como eu faria aquilo atirar…”, brincou.

Quando Ruivo achou que estava livre na casa do bispo e que iria dormir para uma nova jornada de trabalho no dia seguinte, os filhos adolescentes do religioso vieram lhe dizer que toda quinta a noite, era dia deles passearem de carro na rua Augusta, para ficarem apreciando as mocinhas que lá faziam ponto. Lá se foi o nosso amigo motorista/secretário ficar até as 4 horas da manhã subindo e descendo a Rua Augusta feito um idiota. Quando os meninos voltaram para casa para dormir, o Ruivo achou que poderia descansar um pouco. Engano! Mal ele deitou, era 5 da manhã e o bispo já estava a acordá-lo: era hora de ir ao templo que abria pontualmente a 6 da manhã para as orações matinais.

Praticamente sem dormir nosso amigo motorista mal conseguiu tomar um banho, trocar de roupa para a tarefa. Uma sexta-feira duríssima, em que ele não cochilou sequer um segundo.

“Fique atento contra os roubos que são comuns nessa região e temos as doações dos fiéis para tomar conta”, advertia o patrão.

Nosso intrépido motorista mal teve tempo de comer. No final do dia, o Ruivo voltava para a casa com o bispo e o dinheiro dos fiéis . Ainda sem saber como se usava o tal 38. A noite, Dom Mílton, sua esposa e seus dois filhos, resolveram sair para jantar fora. Ruivo que não tinha dormido na noite anterior, mal se aguentava em pé.

Na volta do tal jantar, estava no bairro do Paraíso, bem próximo ao Jardins, tinha pela frente uma prova de fogo: uma das subidas mais íngrimes da cidade de São Paulo que liga o bairro da Aclimação ao Paraíso. No topo dessa subida assustadora, há um cruzamento com sinal de trânsito. Claro que se tratando do azarado Ruivo, o sinal de trânsito estava fechado.

Imagine a cena: ele parado com o Galaxie naquela subida absurda, esperando a abertura do sinal mais dormindo do que acordado, dirigindo um carro que ele mal conhecia, com o bispo ao seu lado e o restante da família no banco traseiro. Acontece que a primeira marcha do Galaxie ficava para baixo e ele, cansado, confundiu a primeira com a do Skoda do seu irmão, o qual a primeira marcha era para cima. No câmbio do Galaxie, esta era a posição da marcha-ré e o nosso motorista na ânsia de fazer uma saída perfeita na rampa, distraiu-se e engatou a marcha-ré.

A sorte dele é que aquela hora da noite não havia nenhum outro carro atrás do Galaxie e quando o sinal abriu ele acelerou forte o motor V8 e tirou o pé da embreagem: ele deu uma arrancada de fazer inveja aos carros de corrida, só que para trás, ladeira abaixo. As pessoas dentro do carro se assustaram e não entenderam nada. Quando ele percebeu o erro fatal, pisou na embreagem e meteu o pé no freio com toda força. Dom Mílton e família deram um tremendo tranco para trás e o intrépido motorista já engatou uma primeira e arrancou para frente, como deveria ser. Parecia uma montanha-russa. Acho que nem os anjos mais milagrosos para quem o fervoroso bispo orava, devem ter ficado no Galaxie na hora do furdúncio. Até eu se estivesse lá me mandaria.

“O que está acontecendo? Você ficou louco? Sabe mesmo dirigir?”, bradava a altos berros o bispo Dom Mílton.

Depois de um breve bate boca, onde toda roupa suja foi lavada, Ruivo disse ao bispo tudo aquilo que estava atravessado em sua garganta. Levou a família de volta para a casa deles e abandonou o tal trabalho que, segundo ele, era coisa de gente louca. Se ele recebeu pelo que trabalhou? Até hoje não sabemos, pois nosso amigo ficou tão alterado por tudo que viu e viveu nesses dois dias, que nunca tivemos a coragem de perguntar, se ele tinha recebido pelo trabalho.

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2 Comentários
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Míriam Bueno da Cunha 24 de junho de 2018

Coitado deste ruivo,depois de cair em um bueiro,arrancar de marcha ré kkkkkk

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Celio* 19 de junho de 2018

Faltou imaginação para o Ruivo. Ele deveria ter dito que pressentiu ou viu algo errado e por isso fez tudo aquilo.

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