Por que ‘rasgar’ o Brasil com o trem-bala é má ideia?

Estudos mostram que trem-bala opera no prejuízo até na China e dependem de subsídios do governo local; avião compensa mais

trem bala na china
A meta, na China, é chegar a 60 mil km de ferrovia para trem-bala até 2030 (Foto: Shuttersotck)
Por Eduardo Passos
Publicado em 08/06/2025 às 13h00

Recentes anúncios de investimentos chineses em infraestrutura colocaram as ferrovias brasileiras em foco. Durante visita oficial do governo brasileiro ao país asiático em maio, Simone Tebet, ministra do Planejamento e Orçamento, chegou a afirmar à Carta Capital que a China quer “rasgar o Brasil com ferrovias”.

Pequim, que construiu um megaporto no Peru, discute financiar uma ligação ferroviária transcontinental ligando o Pacífico ao Brasil. No eixo interno, empresas chinesas já negociam participação no projeto de trem de alta velocidade (TAV) entre Rio de Janeiro e São Paulo, o primeiro trem-bala do Brasil.

VEJA TAMBÉM:

Só a linha que liga Rio e São Paulo custará R$ 60 bilhões, e Tebet já disse que não há dinheiro público suficiente para isso. Dessa forma, grupos da China se juntaram a empresas da Espanha e do Oriente Médio para financiar a obra.

Mas será que um trem-bala é realmente a melhor opção para o Brasil? Aparentemente, não. Tanto que os planos para uma linha de alta velocidade não vão além da rota entre as maiores cidades do país.

Sucesso chinês e rotas deficitárias

A China impressiona pelo sucesso em implantar trens-bala: são 48 mil km de linhas de alta velocidade, a maior rede do mundo. Em 2008, eram apenas 671 km; em 2010 já eram 8.358 km e, para 2030, a meta é chegar aos 60 mil km. Um desenvolvimento tão rápido que serve de propaganda política para o regime comunista, dizem estudiosos do setor.

Porém, do ponto de vista financeiro, nem tudo são trilhos de ouro. Muitas rotas chinesas operam com déficit e dependem de pesados subsídios governamentais. Segundo uma análise da Universidade de Pequim, a receita de passageiros dos TAV na China mal cobre os juros das dívidas contraídas para construí-los.

trem bala na china com pequim ao fundo

O endividamento da operadora estatal China Railway saltou de cerca de US$ 58 bilhões em 2005 para US$ 576 bilhões em 2016 – cerca de 70% desse total associado à expansão da alta velocidade. Globalmente, apenas duas linhas de alta velocidade são lucrativas: Paris–Lyon na França e Tóquio–Osaka no Japão. A maioria exige grandes aportes públicos para se manter, como apontam relatórios do Banco Mundial e da OCDE.

Densidade populacional e relevo desafiam viabilidade

A experiência internacional mostra que trens-bala prosperam em corredores densamente povoados e de extensão moderada (200 a 500 km), como indicam mais estudos, como o da International Union of Railways (UIC).

Já as análises da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) indicam ser preciso ao menos 6 a 9 milhões de passageiros por ano para equilibrar financeiramente um trem de alta velocidade.

No Brasil, entretanto, essas condições são exceção. Mesmo o eixo Rio–São Paulo, que concentra dois grandes polos metropolitanos, teria dificuldade em atingir a demanda necessária.

Hoje, cerca de 7 milhões de passageiros viajam anualmente na ponte-aérea Rio–SP — que tem bilhetes a cerca de R$ 250 com antecedência e está entre as rotas mais movimentadas do mundo.

As previsões oficiais do trem-bala, por sua vez, chegam a projetar 25 milhões de passageiros anuais, mesmo com passagens a R$ 500, segundo o CEO da TAV Brasil, Bernardo Figueiredo.

trem de passageiro no brasil foto luis war shutterstock
No Brasil, existem poucos trens de passageiros, como o que liga Belo Horizonte a Vitória (Foto: Luis War | Shutterstock)

Outras ligações populares nos aeroportos, como São Paulo–Brasília (cerca de 1.000 km) ou Belo Horizonte–Salvador (1.200 km), cruzariam longos trechos de baixa densidade populacional, tornando a rentabilidade ainda mais incerta. Além disso, o relevo brasileiro representa um obstáculo técnico e financeiro: serras e vales exigiriam obras complexas, com túneis ou viadutos que elevam os custos.

Em regiões acidentadas, o custo de construção de linha de alta velocidade pode dobrar, ultrapassando US$ 66 milhões por quilômetro em casos extremos, diz o Instituto Fraunhofer, da Alemanha.

Alternativas: trens regionais e cargas ferroviárias

Diferentemente do trem-bala (que opera acima de 300 km/h), os trens rápidos convencionais podem atingir 160 ou 200 km/h com investimentos bem menores – muitas vezes aproveitando trechos existentes e atendendo cidades intermediárias e talvez sendo viáveis.

O projeto do Expresso Pequi (Brasília–Goiânia), por exemplo, foi concebido para rodar a cerca de 160 km/h e com aproximadamente 210 km de extensão. Até ser engavetado, em 2019, o custo era estimado em R$ 9,5 bilhões e a previsão é de que, após começar a funcionar, a linha desse prejuízo por 28 anos.

É por isso que muito do investimento chinês irá para ferrovias de carga. Atualmente, aproximadamente 65% do transporte de carga no Brasil ocorre por rodovias, contra apenas 15% pelas vias férreas.

A China tem mirado essas oportunidades e quer focar trechos ferroviários para escoar commodities brasileiras, integrando nossa malha à sua Nova Rota da Seda.

Newsletter
Receba semanalmente notícias, dicas e conteúdos exclusivos que foram destaque no AutoPapo.

👍  Curtiu? Apoie nosso trabalho seguindo nossas redes sociais e tenha acesso a conteúdos exclusivos. Não esqueça de comentar e compartilhar.

TikTok TikTok YouTube YouTube Facebook Facebook X X Instagram Instagram

Ah, e se você é fã dos áudios do Boris, acompanhe o AutoPapo no YouTube Podcasts:

Podcast - Ouviu na Rádio Podcast - Ouviu na Rádio AutoPapo Podcast AutoPapo Podcast
2 Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Comentários com palavrões e ofensas não serão publicados. Se identificar algo que viole os termos de uso, denuncie.
Avatar
Jean 9 de junho de 2025

Agradeço pela reflexão, mas gostaria de apresentar uma perspectiva diferente.

Concordo que o retorno financeiro a curto prazo é importante, mas acreditar que o único parâmetro válido é o financeiro é olhar para as ferrovias com visão de túnel. As ferrovias são infraestruturas essenciais para o desenvolvimento de um país: facilitam a migração de pessoas, o transporte de mercadorias, e oferecem uma opção bem mais acessível para camadas de menor renda.

Na China, por exemplo, o governo subsidia rotas em regiões menos desenvolvidas que não são lucrativas imediatamente (talvez nunca). Isso ocorre porque existe uma visão estratégica de longo prazo: ao ampliar o acesso ao transporte nessas áreas, evita-se que fiquem ainda mais isoladas — e acabam esquecidas no mapa, literalmente.

O Brasil também precisa adotar esse olhar estratégico — e não pode se prender aos ciclos eleitorais de quatro anos. Precisamos pensar além de nossas presidências, com planos de desenvolvimento que garantam acesso equitativo e sustentável a longo prazo.

Avatar
Santiago 9 de junho de 2025

Concordo plenanente! E acrescento:
Quando os governos subsidiam o transporte ferroviario, o “lucro” acontece indiretamente e com enormes benefícios para o país todo e para todos os setores econômicos. Economiza-se em saúde pública com a redução de acidentes viários e redução da poluição atmosférica. Economiiza-se divisas com o menor consumo de petróleo. E propicia-se um enorme salto de qualidade na logística, agilizando o trânsito de passageiros e de cargas, enquanto diminui-se e até elimina-se atrasos na circulação dos transportes, o que faz a economia girar melhor e produzir muito mais, o que também aumenta a arrecadação tributária.
Com isso os governos têm ganhos financeiros várias vezes superiores aos valores aplicados nos subsídios às ferrovias, e o país todo ganha com isso.
Nesse caso é investimento, e não prejuízo!
A ferrovia é uma infraestrutura de interesse público, e a sua lógica contábil é muito diferente da regra simplista “receita menos despesa, igual a lucro”.

Avatar
Deixe um comentário