Conversa de pé de ouvido, e um engenheiro inocente demitido!
Douglas Mendonça relembra do dia em que o chefão de montadora descobriu que estava pagando IPI mais caro por conta de seu próprio lobby
Douglas Mendonça relembra do dia em que o chefão de montadora descobriu que estava pagando IPI mais caro por conta de seu próprio lobby
Voltemos para o início de 1996, mais precisamente em março, no lançamento da nova versão de uma picape média para o mercado nacional, com cabine estendida. A “dona” do evento era uma grande fabricante automotiva norte-americana, instalada por aqui há muitas décadas, e que sempre teve prestígio aqui no Brasil. Os jornalistas especializados, incluindo eu, foram convidados para uma pescaria no Pantanal Mato-Grossense, num barco de grande porte (na época, o maior a navegar por rios brasileiros).
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Nele, ficávamos hospedados, já que havia dormitórios para todos os convidados. Um verdadeiro hotel flutuante. Mas o grande destaque era a inédita picape com cabine estendida, bem como o evento com pescaria.
Todo final de tarde, depois que os aventureiros voltavam da tal pescaria, havia uma enorme mesa redonda em que jornalistas e dirigentes da marca norte-americana se reuniam para um bate-papo informal. Numa dessas conversas, um jornalista disse ao vice-presidente da fabricante que anfitriava o evento: “vocês trabalharam no congresso nacional para que fossem feitos os limites de pagamento de IPI de cada um dos carros. Na época, fizeram isso em cima da potência do motor de seis cilindros em linha, e seus 127 cv passaram a ser o limite de imposto. Acima disso, o tributo sobe muito.”
A cara do chefão da fabricante já ia se fechando, e o colega da imprensa seguiu: “agora, vocês lançam um novo sedan, com motor 2.0 16v, que entrega 141 cv, bem mais do que o limite de imposto. Vão ter que pagar mais tributos por isso, e acabaram caindo numa armadilha criada por vocês mesmos!”. O clima, sem dúvidas, pesou na mesa, e o vice-presidente não soube bem o que responder. Não por acaso, eu estava sentado ao lado do diretor jurídico da marca norte-americana e, de pé de ouvido, escutava o que o chefão dizia ao diretor.
O vice-presidente virou, discretamente, para o diretor jurídico e perguntou, meio incrédulo: “do que esse cara está falando? É verdade essa história de que estamos pagando mais imposto na versão de 141 cv do nosso sedã? Quem inventou essa história de limite de imposto?”. O diretor jurídico prontamente respondeu que, de fato, haviam trabalhado para que certa faixa de IPI fosse cobrada até os 127 cv, exatamente a potência do seu motor de seis cilindros em linha. Afirmou que era verdade, o motor 2.0 16v pagava mais imposto, mas deixou claro que o acordo com o congresso havia acontecido lá no começo dos anos 1990.
Eu, quieto, fiquei escutando tudo de pé do ouvido. Mas meu ouvido tinha um pé ainda maior. Diante da afirmação do seu diretor jurídico, que confirmou a história contada pelo jornalista, o vice-presidente virou uma fera. Sem transparecer na mesa, estava muito bravo, perguntando ao diretor jurídico: “quem inventou essa história dos 127 cv? Por que esse limite que nós mesmo criamos agora está nos prejudicando?”.
Nesse ponto da conversa, o diretor jurídico, mantendo a calma, explicou: “o engenheiro só fez o trabalho dele, medindo a potência do motor e nos passando. Fomos até Brasília pedindo que essa tal potência fosse o limite para determinada faixa do IPI, o que aconteceu de fato. Desde então, essa lei não foi mais modificada, e está assim até hoje”.
Visivelmente enfurecido, o vice-presidente foi logo dizendo: “Demite esse tal engenheiro! Quero esse cara na rua!”. O diretor até tentou explicar, falando que o técnico não tinha culpa nenhuma, afinal só havia feito seu trabalho, e que esse havia sido um grande benefício para a marca na época. Eu percebia, pelo tom de voz do chefão, que ele estava falando sério, e era irredutível na sua decisão: “Manda esse cara embora! O resto eu resolvo depois, mas, antes de tudo, quero esse cara na rua”.
Toda essa conversa, ou discussão, aconteceu em voz baixa, um no ouvido do outro. Minha sorte era estar ao lado e escutar tudo “de camarote”. No final, nunca soube se o tal do pobre engenheiro havia sido demitido mesmo. Mas o fato é que esse diálogo me impressionou, tanto que, quase 30 anos depois, ainda lembro bem dele. Nem é preciso dizer que a coisa não deveria tomar esse rumo, e não deveria ter esse tipo de resolução. Um evento num barco no pantanal mato-grossense, numa mesa com pelo menos 20 jornalistas. Não era momento de discussões internas.
O tal vice-presidente ficou transtornado quando descobriu que já, há algum tempo, vinham pagando um imposto mais alto do que gostariam, e tudo era culpa de decisões anteriores da própria fabricante. Tudo envolvia a potência de um velho motor de seis cilindros, versus o quanto rendia um novo propulsor 2.0 16v. Mas, não se assuste, caro leitor: essa prática de manipular números de potência para se enquadrar em faixas de impostos, é antiga e comum. Já foi exercida não só por norte-americanos, mas também por alemães e italianos. Histórias da nossa indústria automotiva…
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