Douglas Mendonça 5.0 e a peneira sobre rodas

Em 1988 a Gurgel colocou um carro de testes todo furado para aliviar peso, enganar o leitor e quase matar o repórter

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Debaixo da carroceria de fibra tinha uma caixa e cardã de Chevette, que eram uma "âncora" para o carrinho (Fotos: Gurgel | Divulgação)
Por Douglas Mendonça
Publicado em 12/11/2024 às 10h00

Nesses meus cinquenta anos como jornalista na área automotiva, tive a oportunidade de ver de tudo, até carro furado! De uma maneira ou de outra, alguns fabricantes sempre tentaram ludibriar os jornalistas que avaliavam seus produtos, e, consequentemente, enganar seus leitores. Infelizmente, alguns colegas, ao longo dessas cinco décadas, devem ter sido enganados e nem perceberam. Não me coloco fora dessa lista, afinal de contas, peguei muita falcatrua e maracutaia em carros de teste. Talvez, algumas tenham passado batidas, e nessas eu caí.

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Essa que conto hoje, por exemplo, quase passou batida, se não fosse uma frenagem forte no final dos testes. Ocorreu no final dos anos 1980, mais precisamente entre outubro e novembro de 1988, com um projeto de carro 100% brasileiro. A fábrica levava o nome do seu fundador, que iniciou a fabricação de veículos utilizando plataforma da VW com motor a ar, mas logo veio a ideia de criar um hatch compacto e bastante acessível, com preço popular. E nessa empreitada, nosso pioneiro na indústria automotiva nacional não foi muito feliz.

Na época, cheguei a conversar com o brasileiríssimo engenheiro por diversas vezes sobre o tal projeto de carrinho popular, e onde ele poderia ser melhorado. Afinal, um automóvel pequeno, compacto, equipado com motor de 800 cm³ que visava a locomoção dentro das cidades, não poderia ter um câmbio pesado, com eixo cardã e tração traseira. Utilizando essa concepção, as perdas de energia mecânica seriam enormes, levando ao aumento de consumo de combustível e a piora na performance do modelo. Sem contar o peso excessivo e desnecessário.

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A proposta do BR-800 era ser um carro popular acessível, mas era um projeto medíocre

Para aquele motor 0.8 de dois cilindros, que produzia um torque máximo inferior a 6 kgfm, deveríamos ter uma transmissão pequena, leve, com baixo atrito interno e, claro, tração dianteira, de preferência com um powertrain instalado transversalmente. Assim, o tal veículo popular seria extremamente leve, ágil e com baixíssimo consumo, muito mais adequado a sua proposta.

Mas o criador da marca pensava diferente: ele quis aproveitar o que já estava pronto no mercado, por isso utilizava eixo traseiro, diferencial e cardã do Chevrolet Chevette, um conjunto já superdimensionado e semelhante ao do Opala, que na época era um sedan grande com muito peso e motor de quatro cilindros em linha. Fica fácil entender a força que o pequeno motor de 800 cm³ do projeto nacional tinha que fazer para tirar aquele conjunto todo da inércia.

Questionado sobre isso, o dono daquela fabricante brasileira me respondia que “o câmbio e eixo traseiro durariam mais que a vida útil do carro, de tão robustos”. Não tinha sentido, mas assim veio ao mundo aquele primeiro carrinho popular de projeto nacional, errado desde as pranchetas.

Nessa época, a fábrica nacional de automóveis colocou na Bolsa de Valores suas ações, para fortalecer sua parte financeira e permitir investimentos maiores no novo carrinho. Para isso, foi necessário divulgar dados técnicos sobre o produto, e um deles era de que o novo carro tinha um consumo de gasolina surpreendente, na casa dos 25 km/l. Na prática, um número que não era obtido nem se o carro fosse lançado do alto de um prédio.

O segundo (e quase mortal) teste no BR-800

Em 1988, fui convocado como repórter especial da Quatro Rodas para fazer o teste de pista de uma das primeiras unidades do tal carrinho popular brasileiro. O fabricante precisava mostrar, e provar, ao país que seu automóvel era tão bom quanto o prometido. Já sabendo que aquelas marcas tão ambiciosas e positivas não seriam alcançadas na prática, o dono da marca utilizou de um artifício, digamos assim, não muito honesto: pediu para que sua engenharia desmontasse o carro por completo e furasse todo seu chassi tubular, incluindo suspensões, para, acreditem, reduzir o peso da unidade avaliada!

O intuito era tentar melhores marcas de consumo e, de quebra, ele teria um desempenho ligeiramente melhor. Dia e horário combinados, lá estava eu na pista de testes em Limeira (SP), aguardando a chegada do pequeno carrinho, que logo foi devidamente instrumentado e partiu para as medições: consumo, desempenho, velocidade máxima, frenagem, distância de rolamento e por aí vai.

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Para reduzir peso no BR-800, os engenheiros da Gurgel fizeram incontáveis furos na estrutura do carro e até na suspensão, tudo para reduzir peso e melhorar a performance

Eu, ao volante, era o responsável por anotar, registrar e conseguir os dados, que seriam comparados com os de um protótipo do mesmo carro, testado um ano antes. Pensei que, nesse período, a engenharia tivesse feito um bom trabalho, melhorando o carro substancialmente, afinal tinha percebido evoluções.

Tudo ia muito bem até o momento do teste de frenagem. O padrão da revista na época era fazermos, com roda bloqueada (ABS, nem em sonho), de 60 km/h até a parada total. Velocidade atingida, pé no freio, rodas travadas e assim ele foi até parar, sem sustos. Em seguida, acionei a impressora para que fosse registrado em fita aquele resultado. Aparentemente, nenhum problema, até tentar sair do lugar com o carrinho: sua frente chacoalhava e ele não andava de jeito nenhum, como se estivesse travado por algo.

Nesse momento, vi meu amigo Cláudio Larangeira, fotógrafo que registrava o processo em imagens, correndo e balançando os braços na direção do carro. Ele gritava “Para! Para!” bastante afobado, e eu sem entender nada ao volante. Quando ele chegou na minha janela, ofegante, me pediu para descer e ver o que tinha acontecido. Fiquei boquiaberto: as rodas dianteiras tinham se fechado, virando uma contra a outra, e era por isso que o carro não saía do lugar. Como aquilo poderia ter acontecido em um teste de frenagem a 60 km/h?

O BR-800 retorceu ao frear

A engenharia da marca também estava por lá. Quando viram o ocorrido, vieram correndo para o meio da pista e se apressaram em anunciar que teriam que levar aquele carrinho para a fábrica. Segundo eles, tinha acontecido um “probleminha”. Ora, probleminha? Rodas entortadas numa frenagem comum? Um problemão, na realidade, já que a suspensão dianteira não tinha aguentado o teste e torceu.

Era um atentado contra a minha segurança, já que estava ao volante, por isso não deixei o carro sair de lá sem saber o que havia acontecido. Até que, finalmente, um engenheiro daquela equipe acabou me contando: tinham feito um processo de alívio de peso, fazendo furos em todo o chassi e mecânica, para melhorar a performance, reduzir o consumo e dar uma boa impressão a quem dirigisse o veículo.

Basicamente, como as pinças de freio vão fixadas nas mangas de eixo, e essas estavam totalmente furadas e enfraquecidas, quando freei a ponto de travar as rodas, elas simplesmente torceram. Ao mesmo tempo, as barras de direção se encarregaram de fechar as rodas. Uma catástrofe! Depois do que me contou o engenheiro de campo, entendi o motivo de o carro ter melhorado tanto com relação ao protótipo avaliado em 1987. Pode até ter tido uma evolução do produto, mas uma boa parte era resultado do tal “processo de alívio de peso”, ou seja, da furação do carro.

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Tentativa de ludibriar a reportagem foi um tiro no pé (ou vários furos)

No caso, infelizmente era eu o “trouxa” ao volante, que fiz curvas em alta velocidade, testes de acelerações bem exigentes e, na prova de velocidade máxima, tinha que frear logo em seguida para entrar numa curva, tudo isso com as suspensões e chassi furados. Um perigo enorme, já que aquela tranqueira inteira poderia ser danificada durante os testes por culpa do enfraquecimento da estrutura. Uma falta de responsabilidade que me deixou transtornado na época. Tudo isso para fazer bonito para os leitores e futuros compradores de ações da empresa, mas sem nenhuma preocupação com quem fizesse os testes. Vê se pode?

Depois disso, acreditem, ainda houve muita pressão para que os resultados do teste fossem…digamos…aliviados. Mas, a bem da verdade é que o tal carro não era nada bom. Mais do que as minhas palavras, quem provou foi o futuro e o mercado. Um projeto que nasceu errado e morreu com seus erros, assim como a empresa que o criou.

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4 Comentários
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Barbara 13 de novembro de 2024

Eu tenho um Gurgel Br 800 mini ano 1990 e não tenho absolutamente nada a reclamar. Inclusive, é meu xodó ♥️

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Polvo 12 de novembro de 2024

Douglas não quer ver um Gurgel nem pintado de ouro! rsrs

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Polvo 12 de novembro de 2024

Eu que até admirava o Gurgel pelo empreendedorismo, mas agora fiquei decepcionado com a atitude da empresa com esse seu relato. Também não sabia que o BR-800 tinha tração traseira e com eixo cardã. Num carro desse tamanho realmente não tinha como dar certo mesmo.

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Antônio do Sul 12 de novembro de 2024

A engenharia da fábrica foi incompetente até para trapacear…

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