Douglas Mendonça 5.0: os carros de imprensa ‘artesanais’ da Anchieta
Entre os veículos de testes cheio de artimanhas, mais difíceis de serem descobertas, os da marca do carro do povo eram impecáveis
Entre os veículos de testes cheio de artimanhas, mais difíceis de serem descobertas, os da marca do carro do povo eram impecáveis
Nos mais de dez anos em que trabalhei na revista Quatro Rodas, vi todo o tipo de artimanhas das fábricas para deixar os carros de testes de imprensa mais potentes, econômicos, rápidos, confortáveis ou bons de guiar. Esses veículos “preparados” eram nitidamente melhores que aqueles, teoricamente idênticos, encontrados nas concessionárias Brasil afora. Carros especialmente preparados pelas engenharias e que praticamente eliminavam os vícios da produção em grande escala.
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É fácil entender: em uma linha onde são produzidos cerca de mil carros por dia, os fabricantes têm tolerâncias nessa produção. Tolerâncias essas que vão do melhor ao pior, mas ainda ficam dentro das especificações do projeto original do modelo. Na prática, isso quer dizer que, se você comprar um veículo 0 km em uma concessionária, pode pegar uma unidade com todas as tolerâncias próximas às do projeto original, o que significa um carro muito bom. Ou então, o contrário: um veículo que, por coincidência, foi feito nas tolerâncias mínimas especificadas, resultando em um conjunto não tão bom assim. Às vezes, até problemático.
Mas, é claro supor que os carros da frota de imprensa, aqueles que os jornalistas iriam avaliar para produzirem reportagens e matérias, deveriam ter tudo de bom que a produção em grande escala pudesse fabricar. Ou seja, aquele das melhores tolerâncias, mas sem sair dos números especificados no conceito original. Basicamente, a melhor configuração dentro do normal.
Uma grande fabricante alemã, já instalada no país há décadas, que certamente você conhece muito bem, cuidadosamente fazia com que todos os seus carros de imprensa, antes de entrarem para a frota, passassem pelo crivo da engenharia. Com muito preciosismo, os engenheiros dedicavam tempo e dinheiro praticamente desmontando o tal carro por inteiro, para depois remontá-lo com tudo que havia de melhor, peças escolhidas a dedo e por aí vai. Aí, qualquer carro “meia-boca” se transformava em numa “quintessência” da engenharia.
Tudo era meticulosamente medido, ajustado e regulado, mas nunca ultrapassando os limites de tolerância da produção em série. Um trabalho demorado, feito por um time competente, que não deixava margens para erros. Era bastante inteligente: além de motor, câmbio, suspensões e freios, até o interior ficava mais caprichado. Colocavam mais mantas de isolamento acústico, fixavam melhor peças de painel e laterais de portas, preenchendo muitas partes “ocas” com isopor, para assim conseguirem mais silêncio a bordo e baixos níveis de ruídos internos.
Até os instrumentos de painel perdiam os seus altos percentuais de erros, e se transformavam em aparelhos bem mais precisos: quilometragem do odômetro, nível de combustível do tanque, velocidade registrada, tudo ficava “justinho”, fiel à realidade. Na mecânica, amortecedores exatamente com a calibragem especificada, molas com apoios para evitar barulhos, ajustes milimétricos na direção, lubrificação e acertos para deixarem as trocas de marchas extremamente macias e precisas, e por aí vai.
O motor ganhava peças mais leves, cabeçotes com vedação perfeita e comando com o melhor sincronismo, enquanto a transmissão recebia ajustes especiais para as engrenagens (ficavam bem mais silenciosas) e, às vezes, até lubrificantes especiais, bem mais caros. Qualidades difíceis de serem encontradas juntas nos carros vendidos 0 km nas concessionárias, mas que eram obtidas através de alguns dias de dedicação lá no setor de engenharia da fábrica.
Para que tudo isso? Deixar o carro no melhor estado possível, e “ludibriar” jornalistas e seu público. Assim todos pensavam que um determinado modelo era realmente impecável em todos os detalhes, um carro excepcional. E era mesmo, afinal, aquela unidade havia sido construída à mão pela engenharia, e estava bem longe daqueles outros feitos normalmente nas linhas de produção.
Quem dirigisse o carro, certamente escreveria maravilhas sobre ele, pois andava muito, gastava pouco, era confortável e silencioso, e oferecia tudo de bom para quem fosse seu proprietário. A realidade, algumas vezes, não costumava ser bem assim, afinal não existe carro perfeito. Alguns melhores, outros nem tanto, mas nenhum realmente perfeito.
Mas, voltando para a tal marca alemã, que era “craque” em preparar esses carros especiais para a imprensa, me lembro de uma conversa informal que tive certa vez com um engenheiro. Ele trabalhava na preparação dessas unidades para a frota de imprensa, e nós tínhamos uma proximidade quase de amigos, por isso cheguei a comentar que havíamos encontrado vários carros “mexidos” e preparados em nossos testes da Quatro Rodas.
Ele, com ar irônico, me respondeu: “fazemos esse retrabalho aqui também, mas duvido que você, algum dia, vá descobrir alguma coisa fora dos padrões nos nossos carros de imprensa!”. Continuou: “pode desmontar de parachoque a parachoque, peça por peça, que não vai ter nada fora do normal, nada diferente daquilo encontrado nos carros normais de produção”. Ele me disse aquilo com tanta certeza, que eu fiquei com a clara impressão de que o esquema deles era o seguinte: faziam tudo dentro das especificações de fábrica, mas sempre para o melhor.
O melhor motor, melhor câmbio, melhor suspensão, melhor freio, melhor nível de silêncio e conforto, mas sem sair das tolerâncias. Ao contrário dos outros fabricantes, que subestimaram a qualidade da revista e sua equipe, e prepararam carros “na cara dura”, com cabeçotes rebaixados, comandos de válvulas especiais, virabrequins usinados, taxas de compressão aumentadas, carrocerias mais leves, a tal marca alemã era mais esperta: não saíam dos números especificados do projeto, mas tiravam o máximo proveito dos ajustes originais de seus veículos.
Só para que se tenha uma ideia, numa determinada ocasião, levantamos um carro da marca alemã no elevador de serviço. Achamos, no eixo traseiro, um pequeno adesivo que estava literalmente escrito “Peça Carro Imprensa”. Noutra ocasião, cheguei a ver um carimbo escondido no manual do proprietário de um modelo feito no México pela mesma marca. Lá dizia “(nome da marca) del Mexico – Auto de Prensa” (“Carro de Imprensa”). Ou seja, o danado já vinha da fábrica mexicana com a missão de ser avaliado por jornalistas brasileiros. Nesse caso, toda a preparação era feita lá mesmo, e por isso ele vinha importado já com a chancela de veículo especial. Uma prática mundial.
Para a fábrica, esse carro não custava só aquele valor praticado nas concessionárias. Era bem mais caro. Componentes especialmente concebidos, horas de engenharia e trabalho dedicados à preparação custavam dinheiro. Por isso, na prática, cada unidade “especial” dessas podia custar mais que o dobro do normal. Para a fábrica, é investimento: assim, todo mundo que avalia, acaba gostando e falando bem dos seus produtos. Tanto é que muitas ainda preparam esses “exemplares de imprensa” nos seus setores de engenharia. Deve valer a pena…
Na próxima semana, contarei com mais detalhes, e exemplos, o que as fábricas faziam para deixarem seus carros de teste melhores. Não perca!
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Há anos li uma reportagem parecida, sobre essa mesma marca, que precisou “juntar” várias unidades para poder produzir um Gol GTI à altura do futuro proprietario ilustre (Ayrton Senna). Casos tão pitorescos quanto vexatórios para quase todas as marcas da indústria nacional, que essa intetessante série de matérias tem nos trazido. Parabéns pela coluna, sempre muito boa de de ler.
Interessante…não deixa de ser um “investimento” e uma estratégia de marketing, já que um bom resultado em um teste de imprensa pode garantir bons números de venda. Controle de qualidade “premium” para os carros de imprensa.