Equívocos inexplicáveis do mercado automotivo brasileiro

Mercado automotivo elege e defenestra modelos e estilos de carroceria pelo achismo coletivo, que podemos chamar de idiossincrasia

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Critérios de compra no Brasil não consideram a função, mas um consenso coletivo (Fotos: Shutterstock)
Por Eduardo Pincigher
Publicado em 29/03/2025 às 15h00

Anos atrás, aprendi uma palavra que define com exatidão o tema que quero abordar na coluna de hoje: idiossincrasia. O dicionário concede dois significados. O primeiro está relacionado à medicina. Não nos interessa, portanto. O segundo: característica comportamental peculiar a um grupo. Pois é exatamente isso.

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Nós, brasileiros, temos algumas idiossincrasias quando interagimos com o mercado automotivo. A gente simplesmente acha. E faz. Mas talvez nem se pergunte o porquê ou se dê o benefício da dúvida. Pá-pum. Permito-me elencar alguns exemplos.

Esportivo com 4 portas

O jornalista Bob Sharp mencionou em um de seus textos, recentemente, sobre a preferência que havia anos atrás no Brasil por carros de 2 portas. E ele crava: prefere sempre (e eu sigo o relator) a carroceria com 4 portas. “Duas portas para mim só em picape (cabine simples) ou caminhão”, disse.

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Porsche Panamera é a prova que podemos ter um superesportivo com quatro portas (Foto: Porsche | Divulgação)

Essa implicância ainda resiste em esportivos. Penso eu que isso é herança óbvia da imagem proporcionada por cupês (2+2) e roadsters (2 lugares) de marcas afamadas, como Porsche e Ferrari. Mas é preciso ressaltar que, mesmo nesses casos, elas constroem seus esportivos com 2 portas por uma razão direta com o número de assentos.

Nos modelos 2+2, como o 911, por exemplo, dificilmente se fará uso dos assentos traseiros. Tanto que ele não é um carro de 4 lugares, mas sim um 2+2, onde há dois pequenos nichos para serem usados ocasionalmente. Quando a Porsche faz o sedã Panamera, propriamente com 4 lugares, note que ele só sairá com carroceria de 4 portas. Por que implicar com esportivos 4 portas, então?

Picape a gasolina vs diesel

Até já dediquei o espaço dessa coluna para explicar por “a+b” que nada justifica a preferência dos brasileiros por picapes movidas a diesel. Esse é um hábito que data do início dos anos 1980, quando tínhamos as indestrutíveis Ford F1000 e Chevrolet C20/D20. Pode ser que lá atrás houvesse razão para optar pela robustez, pela durabilidade e pela manutenção mais espaçada dos motores a ciclo Diesel. Hoje não mais.

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Fiat Toro oferece agilidade e boa oferta de torque sem precisar apostar apenas no diesel (Foto: Fiat | Divulgação)

Além de as picapes a gasolina continuarem custando mais barato – a diferença de preços na Fiat Toro, uma das únicas que possui ambas as versões de motorização, é de cerca de 15% –, os motores a gasolina, principalmente quando são superalimentados, já “encostam” no torque das picapes a diesel, criando grande aptidão para o trabalho pesado. Além disso, a suavidade na operação é incomparável e a faixa mais elástica de aproveitamento de rotações não me deixam qualquer dúvida: picape a gasolina sempre será melhor. Mas só eu acho isso.

“SUV é um ótimo carro familiar”

Já expressei aqui minha indisfarçável implicância com os SUVs, considerando o uso padrão ao qual ele é destinado, como o carro da família. Parece difícil contestar a opinião de mais de 50% dos compradores de carros zero km no Brasil, que é a expressiva fatia atual abocanhada pelos utilitários-esportivos. Mas estou convicto de que há opções sempre melhores em qualquer segmento.

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No alto clero da Mercedes, há uns 15 anos, a maioria dos diretores rodava no SUV ML, menos o chefão da engenharia que utilizava um Classe E (Foto: Mercedes-Benz | Divulgação)

(Quando eu trabalhava na Mercedes-Benz, uns 15 anos atrás, reparava sempre no estacionamento da diretoria. A empresa tinha 6 vice-presidentes. Cinco deles usavam Classe M como carros designados. E apenas um adotava a Classe E. Detalhe: o executivo que andava de sedã era o VP de Engenharia. Ou, em outras palavras, era o cara, dos seis, que mais entendia do riscado… rs)

Eu compreendo que as pessoas tenham uma percepção maior de segurança quando estão sentadas (o tal do ponto H) ligeiramente mais altas que os motoristas dos demais carros no trânsito. Você enxerga melhor o que acontece à sua volta e se sente um pouco mais seguro. Mas não vou discutir “impressões”. E sim fatos. A eles:

  1. Esse tipo de carroceria é mais alta que a dos virtuosos sedãs e das saudosas camionetas (station wagon). Por esse simples fato, eles não possuem os mesmos dotes de aderência e estabilidade que os similares tradicionais, a despeito do largo uso de recursos eletrônicos. E eu não consigo engolir que alguém compre um carro para a família sabendo – ou deveria estar sabendo – que ele não será tão seguro dinamicamente quanto outros tipos de carroceria.
  2. Ele é mais pesado: anda menos e gasta mais. Simples.
  3. Porta-malas menor: de que adianta ter um carro para a família em que a bagagem terá de viajar nos pés dos ocupantes traseiros ou, muito pior, no colo de quem se senta no banco de trás, o que é até inseguro? Dou exemplos: a capacidade de porta-malas do Toyota Corolla Cross é de 440 litros, 30 l a menos do que no Corolla, versão sedã. Fiat Pulse versus Fiat Cronos: 370 l contra 525 l, respectivamente.
  4. Os SUVs são mais caros: não há nenhum motivo para isso, a não ser o mercadológico. Devido à maior procura, você eleva o preço e os clientes, ora, pagam. Para seguir nos exemplos acima, o Corolla Cross XRE 2.0 custa R$ 187.290. O Corolla XEi, R$ 158.490. Já o Fiat Pulse Drive AT 1.3 é vendido por R$ 116.990, enquanto o Cronos Drive 1.3 AT sai por R$ 109.990.

Compra quem quer. Mas continuarei antipático aos SUVs. Mesmo que fique falando sozinho…rs

Vans de transporte de passageiros

A JAC tentou. A Mercedes-Benz também. Mas esse segmento de vans de porte médio para transporte de passageiros, com capacidade para 7 ou 8 pessoas, nunca emplacou no Brasil. Sucesso na Europa e, principalmente, na Ásia – na China, há dezenas de opções –, o Brasil não consome essa categoria de veículos.

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Vans de porte intermediário, como o Mercedes Vito, fazem sucesso no mundo todo, menos no Brasil (Foto: Mercedes-Benz | Divulgação)

Não consigo entender o porquê. Para o transporte executivo de passageiros, como aqueles serviços que fazem traslados de aeroportos para hotéis, por exemplo, o uso de qualquer carro de passageiros será inadequado. Imagine que você precise transportar uma família de quatro pessoas. Se for um sedã grande, pode ser até que três passageiros caibam no banco traseiro. Mas duvido que a bagagem de 4 pessoas será acondicionada no porta-malas. Não cabe. Não dá.

Essas vans, como JAC T8 e Mercedes-Benz Vito, são soluções excelentes. Você instala os seus 4 passageiros e sobra espaço no porta-malas para carregar as malas de todos eles. Pois quem realiza essa atividade prefere gastar mais e adquirir vans grandes, como Renault Master ou Mercedes Sprinter. Custam mais. E, no exemplo que eu dei, vão rodar com vários assentos vazios. Vai entender…

Para o transporte de carga, esse porte de vans até já faz algum sucesso, tendo Fiat Scudo e Peugeot Expert (na verdade, o mesmo carro) como representantes. Mas para levar passageiros? Nenhuma.

Carro usado com mais de 100 mil km não presta

Piada.

Aprendi com o saudoso Josias Silveira, criador da revista Oficina Mecânica nos anos 1970, que os carros mais rodados têm alma. Acredito nisso. E tenho uma certa queda por alguns deles. Tenho um Fusca 1976 e uma Variant 1974… ambos com altíssima km, nos quais tenho enorme confiança. Subo em qualquer um deles para fazer uma viagem de 500 km agora.

(Mentira. O Fusca é 1300. Mas na Variant, claro que dá!)

Vamos ao lado mais pragmático dessa história: o estado de conservação e o histórico de manutenção de um carro usado são muito mais importantes do que a quilometragem apontada pelo hodômetro.

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Há carros e carros com mais de 100 mil km (Foto: Shutterstock)

Se você adquire um carro com 120, 130 ou 150 mil km, que tiver um histórico confiável de manutenção, a probabilidade de ocorrer algum problema severo é muito menor, até porque, com o hodômetro registrando uma marca como essa, o ex-proprietário já fez praticamente tudo pelo menos uma vez: amortecedores, óleo de transmissão (no caso de câmbios automáticos), disco e platô de embreagem, bomba de alta. Talvez te sobre, caso não tenha sido feito, uma troca de bicos injetores e alguma central eletrônica que cisme de pifar. Mas é um risco bem consciente, caso, repito, o histórico de manutenção for confiável.

E você, o que apontaria de “lenda urbana” no mercado automotivo que é errado?

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1 Comentário
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Santiago 29 de março de 2025

No caso das pick-ups, o que mais determina a preferência pelas diesel
é o consumo “aeronáutico” das versões a gasolina. Não fosse por esse detalhe, certamente o ranking das preferências estre ambas seria bem diferente.
Quanto aos “SUVs”, os exemplos aqui citados são tecnicamente Crossovers (um “cruzamento” de hatch com perua). E que em terras brasileiras passaram a ostentar o apelativo rótulo de “SUV”, com o passivo consentimento do Inmetro (o que um pesado lobby de montadoras não é capaz de conseguir…). Daí os atuais”‘SUVs” brazucas serem tão espaçosos e confortáveis quanto qualquer hatch submédio.

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