Eduardo Pincigher recorda da convivência com feras da fotografia que sempre foram os grandes companheiros de qualquer repórter
Fico por instantes mentalizando a imagem, traduzo em palavras e digito. Releio. Não fica como eu queria. Apago metade da frase. Reescrevo. Fica quase bom. Mas ainda… não, não tá legal. Vem outra ideia. Altero as palavras e… OK, acho que é isso.
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Faço isso há 35 anos. Todas as vezes em que escrevo sobre alguma particularidade de um carro, passo por esse processo. Dito assim, dá um %$@#& trabalho, não? Dá. Já fiz isso, sei lá, centenas de milhares de vezes? A gente se acostuma. É feito com paixão, mas não é fácil.
O que eu gasto um tempão… eles vão lá, só apertam um botão e fica muito melhor. Falo dos fotógrafos especializados em automóveis. “Uma imagem vale mais do que mil palavras”. Acho até que eles são chef´s de cozinha. Eles alimentam a nossa paixão, com técnicas culinárias que envolvem intensidade da luz, tempo de exposição (velocidade) e precisão na munheca. Mão frouxa não se cria. Tem que ter firmeza.
Trabalhei com dezenas deles. Vou elencar só cinco nomes. Talvez você nem os conheça, mas arrisco que já foi influenciado por algum(ns) deles. Meu mais profundo respeito e admiração por esses caras.
Larangeira com “G”, embora o corretor do Word insista no “J”. O Laranja é o patrono do fotojornalismo automotivo. Atua há 50 e tantos anos nisso. Começou em Quatro Rodas, no início dos anos 70, onde retratava os testes, fazia reportagens de turismo, ia pra autódromos e registrava corridas. Era amigo do Ayrton, inclusive.
Fazia até “segredos”. Há uma história lendária em 1973. Estava com o jornalista Nehemias Vassão, especializado nesse tipo de investigação. A bordo de um Fuscão, perseguiam um protótipo do VW Brasília nas redondezas da fábrica da Volks, no ABC paulista. O carro estrearia meses depois. O Vassão guiando e o Laranja com meio corpo pra fora da janela para fotografar a novidade.
Anos 1970, amigo. Tempos bicudos.
Estavam numa estradinha sem saída próxima à sede da Volks. Descontentes por terem tomado o flagra, os seguranças resolvem abrir fogo contra a dupla de jornalistas. Simples assim. Um dos tiros acerta a placa dianteira do Fuscão e obriga o Vassão a parar o carro. Laranja sabia que tomariam o filme. Tanto que a câmera foi apreendida e quebrada. Arrancaram o filme da máquina, deram uma descompostura nos “subversivos” e os levaram para a delegacia. Ficaram presos por uma tarde. Acusação? Sabe-se lá. Ninguém se importava com isso.
Trabalho perdido? Nada disso. Quando percebeu o que ocorreria, o Laranja pegou o filme e o escondeu dentro da meia. E pôs outro rolo virgem na máquina. As fotos foram pra capa da revista, março de 1973.
Trabalhei com ele em Quatro Rodas e Motor Show. Foram 10 anos fazendo reportagens juntos. Depois ainda o contratei por mais 10 anos para fazer as fotos de divulgação da JAC Motors. Um trator no trabalho, um gentleman nas relações. Autêntico mestre.
Um dos caras mais experientes do meio, foi editor de fotografia da Autoesporte por décadas. Depois fechou acordo com a inglesa Car Magazine e publica a revista sob licença no Brasil. Luca é um craque fotografando carros. Mas seu trabalho com automobilismo é surreal. Já fez a cobertura de 212 GPs de Fórmula 1. Participou de outras centenas de provas de todas as outras categorias que você imaginar.
Anos atrás, eu escrevi um romance chamado “43, duas mulheres, dois homens, amor, sexo e traições”. Ficção pura. Aliás, nem tanto. Explico. O livro tem quatro personagens fictícios. Mas as histórias picantes que eles e elas vivem são reproduções de acontecimentos reais que assisti ao longo da minha carreira. Muitos deles totalmente proibidos de serem reproduzidos com os nomes dos devidos autores. Dariam encrencas gigantescas. Na verdade, deram. Um dos personagens chama-se Luca e é fotógrafo. Infeliz coincidência! O livro chegou à casa do Bassani e deu uma imensa dor de cabeça ao cara. Foi mal, amigo.
O Marinho trabalha na revista Duas Rodas há 25 anos. E não é à toa. Faz também fotos para o Motor 1. É um dos caras mais ‘gente boa’ do nosso meio. Conheço poucos profissionais tão empenhados com a essência do jornalismo. Vou explicar o porquê com um exemplo.
Imagine que você está dentro da Yamaha, em Guarulhos (SP), durante todo o dia fazendo uma reportagem especial. E chega pelo celular a informação de que um leitor da revista havia feito a importação independente da Kawasaki Ninja 250, moto essa que seria lançada meses depois e viria a ter grande relevância entre as esportivas. A revista estava prestes a ir pra gráfica. Só havia mais um dia para encaixar qualquer novidade naquela edição. Nem a Kawasaki tinha a moto no Brasil. Só esse cara. Só que ele morava no interior do Rio Grande do Sul. Eram mais de 1.000 km de SP. Pois não foi que o Marinho passou em casa, pegou uma muda de roupas e caiu na estrada? Parou pra dormir às 23h00 e, dia seguinte, às 6h00, já estava de pé de novo.
Chegou à casa do leitor logo após o almoço, pegou a moto, fez as fotos com o repórter da revista pilotando a Ninja, e voltou pra São Paulo. Que tal um bate-e-volta de 2.000 km!? Resultado: a Duas Rodas furou a imprensa de todo o país.
O caçula desse time avançou e se tornou um brilhante film maker. Hoje fotografa menos e faz vídeos institucionais e lançamentos. Talento puro, o Johnny começou em 2001 com apenas 17 anos na Sisal Editora (revistas Oficina Mecânica, Hot e Duas Rodas). Depois trabalhou na Full Power. Ficava socado no arquivo da Sisal organizando papéis e fotos. Também escrevia e diagramava, mas era fissurado por fotos. Insistiu por meses até que teve sinal verde para fazer uma matéria de radares.
“Fiz mais de 30 fotos com a câmera manual. No final do expediente, precisava mandar para revelação. Fiz uma foto de motor na garagem da editora. Sobraram duas. Fotografei um capacete. Bateu no 36. Girei mais uma vez a corda e disparei para o teto. 37. Mais uma corda e nada de enroscar (ele trava no final da bobina). Disparei 38, mais uma corda… coração já na boca. Olhei pelo acrílico da tampa e… não tinha filme na câmera. Dia inteiro de trabalho perdido”, conta.
Na matéria seguinte, passou a checar e a rechecar se havia filme na câmera. Desde então, amigo, começou a dar show. Nunca mais parou.
Não vou me estender: Marco de Bari foi Pelé. Único membro que já se foi, vítima de um acidente dentro de um… estúdio de fotografia.
Tenho inúmeras histórias (publicáveis ou não) com ele. Uma das mais curiosas ocorreu em 1992. A edição de maio de Quatro Rodas trazia um comparativo entre Nissan 300ZX Turbo e Mitsubishi 3000GT VR4, feito pelo piloto Christian Fittipaldi no Autódromo de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Além de craque, o Bari tinha um humor fora da curva. Era um exímio tirador de sarro. Ninguém escapava dele.
Levamos o equipamento que usávamos nos testes convencionais. Antes de o Christian chegar ao autódromo, montei tudo e fiz as minhas medições no retão do circuito (acelerações, frenagens etc) logo no início da manhã, com 25 ºC. Chega o Christian. Entro com ele na pista pra ensiná-lo a lidar com o equipamento. “Pra fazer 0 a 100 km/h, você aperta esse botão, arranca e, no final da reta, aperta aqui pra imprimir o resultado…” Desço do Nissan e ele parte pra pista. Ao retornar, Christian mostra a fitinha impressa ao Bari. Eu sigo desmontando o equipamento para passá-lo ao 3000GT.
Ao olhar para a fitinha do 0 a 100 km/h feito pelo Christian, o fotógrafo cochicha alguma coisa e o piloto passa a me olhar torto. E assim foi até o final da reportagem. Mal se despediu. E eu não entendia o porquê. O Bari disse a ele, por pura sacanagem, que meu tempo havia sido 0,2s melhor que o dele (6,5s contra 6,71s). “Esse baixinho vai aparecer em cima de você e também publicar os tempos dele na reportagem”, cutucou. O cara era piloto de F1! Ficou P da vida, até porque ele fez as medições com o sol do meio-dia, o que, óbvio, renderia tempos piores.
Saudade do Bari.
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