A inexplicável precisão do ‘nadegômetro’ ao volante

Jornalista, com dom sobrenatural sob o jeans, recorda dos incontáveis embates com engenheiros que não concordavam com suas avaliações

HOMEM DIRIGINDO RÁPIDO shutterstock
Muitas percepções ao volante podem ser mais sensíveis que o mais preciso dos instrumentos e calculos (Foto: Shutterstock )
Por Eduardo Pincigher
Publicado em 23/08/2025 às 17h00

Fui forjado como jornalista automotivo em outros carnavais. Lembro-me que era comum ficar estudando curva de torque do motor de um carro, cruzando com as suas relações de câmbio e diferencial, mais o peso (massa) da carroceria, para elucidar o porquê que o carro xis retomava melhor a velocidade do que o carro ípsilon.

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Sei lá, talvez o fato de o mercado ser muito mais enxuto, a necessidade que o consumidor tinha de informações era bem direcionada ao lado técnico. E eu ingressei nesse mundo com esse propósito: contar as novidades, explicar como funciona, interpretar resultados, narrar minhas impressões e recomendar compras, respeitando as preferências particulares de cada um.

Por exemplo. Nos anos 1980, quem comprava o VW Santana sabia que levava pra casa um carro com temperamento mais esportivo, com torque em baixa e suspensão mais firme. E quem adquiria o Chevrolet Monza era porque preferia melhor acabamento e conforto ao rodar, tanto nas relações mais longas de câmbio como na suspensão mais macia. Por fim, quem comprava Ford Del Rey… bom, era porque… éééeé… Era porque estava distraído mesmo.

(Desculpe pela piada. Não resisti.)

Por mais que nunca tenha tido formação técnica acadêmica, as leituras sobre “mecânica de automóveis”, fosse em revistas, livros ou enciclopédias, deram-me algum know-how. Não sei projetar e nem construir nada, tal qual um engenheiro. Mas entendo como tudo funciona e, principalmente, se é o resultado no uso é bom ou ruim.

O patrulhamento das fabricantes

Quando as redes sociais e a internet não existiam, as fábricas de carros ficavam muito atentas a tudo o que era publicado na imprensa automotiva. Havia meia dúzia de revistas especializadas e os cadernos automotivos dos jornais. E só. Quem queria saber sobre carro ou optar por uma compra, só tinha essas fontes para se informar.

Em razão disso, tive vários embates com engenheiros. Bastava que eu fosse mais crítico com algum produto que, pimba, lá vinha o assessor de imprensa da marca, com um engenheiro a tiracolo, pra rebater o teor dos meus textos. Nesse repetitivo jogo de xadrez, os caras vinham com o CREA e eu respondia com a minha bunda.

Urge esclarecer: por mais que eu não pertença ao Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA), que reúne os engenheiros, eu utilizava uma bunda bem calibrada. E tinha percepção aguçada para avaliar movimentos, ruídos, comportamentos e reações de um carro. Os engenheiros vinham “grandões” para debater, abusando do “engenheirês”. Eu apenas respondia. “Tá bom, só que a suspensão do seu carro é uma bosta”. Ou “OK. Mas o [concorrente] é melhor.”

(Sou detalhista com esse tipo de percepção. Dia desses, eu tentava mostrar ao mecânico do meu carro que havia um barulhinho esquisito na traseira do carro. Era um “tum-tum-tum” bem suave. O mecânico não achou. Insisti. Pus o carro no elevador e comecei a checagem visual. E achei. O cabo do freio de estacionamento, originalmente afixado no túnel central por presilhas, havia perdido uma delas e criou uma barriga. Resultado: em algumas situações, ele esfregava no cardã e criava o tal do tum-tum-tum.)

Os “desentendimentos”

Em um desses embates, eu estava jantando durante o lançamento da Ford Ranger, quando um engenheiro da marca, já calibrado por várias caipirinhas, resolve ter a indelicadeza de questionar minha lisura profissional, usando como exemplo um comparativo que eu acabara de publicar na capa da Motor Show, entre VW Saveiro e Ford Courier.

Parou ao lado da mesa, dedo em riste. “Você disse que a suspensão traseira da Courier era de carroça!” Qual seria a forma de descrever um eixo rígido com molas semielípticas? Carroça, ué. “Você também disse que esse tipo de suspensão só era robusta, mas eu tenho aqui alguns cálculos baseados em ensaios dinâmicos que mostram…” Pedi para ele nem perder tempo. Não estava interessado em ser convencido do “inconvencível”. Ele: “eu te desafio pra um racha num autódromo!”

(Aliás… tem picape que ainda usa. Olho nelas.)

Sentado, calmamente, respondi. “Tá aceito. Prometo que vou guiar com uma mão só e nem vou engatar a quinta”. Baixei a cabeça e dei nova garfada no bife. Eu não tinha propósito para defender a Volks. Só que o eixo de torção sempre foi, é ou será mais eficiente que o rígido em se tratando de performance. Entendo que o cara tenha ficado bravo pela denominação pejorativa que dei. Mas que a suspensão da Saveiro era melhor, isso não se discute.

Em outra situação, desta vez lá dentro da ala 17 da Volks (onde fica a Engenharia), eu reencontrei o chefe da área de motores, que conhecia desde que havia sido estagiário da Autolatina, em 1989. Anos antes, a Quatro Rodas havia publicado um teste do Gol com motor AE (antigo CHT da Ford). O cara tinha boa memória e era vingativo.

“Avisa para o teu chefe que eu abri uma cova com o nome dele aqui no jardim da 17 no dia em que saiu aquele lixo de matéria”, disse o engenheirão. O título da reportagem era: “Mudou e piorou”, feita pelo Bartô (Luiz Bartolomais Jr). Dei risada. E não perdi a chance de provocá-lo – pra dizer a verdade, eu era bem folgado mesmo, ainda mais quando estava convicto. “Geraldo, o Bartô estava certo. Piorou mesmo. O AP é melhor em tudo”. Ele só rebateu. “Posso abrir uma segunda cova”. Virou jogo de truco, né doutor?

“Então abre a terceira só para desovar as milhares de varetas empenadas que devem estar chegando da rede de concessionários”. (Como o motor AE/CHT tinha comando de válvulas lateral, no bloco, a transmissão do comando para os balancins era feita por varetas. Se você operasse seguidamente o motor em rotações altas, elevando muito a temperatura, ou se houvesse folgas no ponto de acionamento dos balancins, adivinhe… elas podiam se soltar ou empenar.)

Outro episódio, de volta ao período de Motor Show, foi no lançamento do Peugeot 206, ainda importado. Fiz o texto do carro, a primeira reportagem. E percebi que a suspensão estava mal calibrada. Ele rolava muito e dava trancos ríspidos quando passava por ondulações. Escrevi no artigo: “as molas não conversam com os amortecedores. Enquanto elas são moles, aumentando o rolling e prejudicando a estabilidade, a carga na extensão dos amortecedores é alta, dando um golpe duro na carroceria”. Percebi isso contornando curvas de entrada de pontes, nas Marginais aqui de São Paulo. Eu entrava rápido e sentia a carroceria rolar. Só que, nas emendas de asfalto, a resposta dos amortecedores era praticamente um coice.

Deu rolo. O carro era bem bonitinho, tinha design bem moderno pra época. A Peugeot achou que ia bombar e ter aprovação unânime nas avaliações. Na Motor Show, não teve. Foi assessor de imprensa e engenheiro na redação da revista. E eu só respondia. “Quer dar uma volta comigo na rua? Eu tô com um Corsa de teste. Te mostro como é uma suspensão bem calibrada para o Brasil”. Anos depois, quando o 206 foi nacionalizado, o chefe da Engenharia da Peugeot chamou o Douglas Mendonça, também da Motor Show, e confessou durante o evento de lançamento: “recalibramos os amortecedores”.

Eles conhecem o produto deles. Eu, a concorrência

Minha maior vantagem sobre os engenheiros era o fato de que eu conhecia (bem) todos os concorrentes para poder decretar quem era melhor ou pior. A comparação é tão vital que as fábricas de automóveis até fazem clínicas com os rivais às vésperas de lançamentos. Alguém consegue os competidores emprestados, ou eles são alugados, e monta um roteiro de 200 km ou 300 km, sei lá, onde os funcionários da marca vão rodando e trocando de carro a cada 50 km ou 60 km. Todos guiam todos. Depois eles dão notas e as comparam com o seu próprio produto. Só há dois problemas: isso geralmente envolve executivos da diretoria, que não sabem a diferença de pneu e carburador. E quem vai criticar pra valer o seu próprio produto?

História real: anos atrás, uma fábrica só fazia a liberação do primeiro veículo a ser cedido para a imprensa para testes depois da auditoria de qualidade feita pelo presidente. Ele olhava a junção de chapas, via pontos de solda, avaliava desempenho, qualidade do acabamento. Se ele era formado em Engenharia? Na mesma faculdade que eu.

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2 Comentários
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Zé das Quantas 23 de agosto de 2025

Deveria ter um corretor no site.

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Zé das Quantas 23 de agosto de 2025

Não sei se você testou o Novo Corsa 1.8 2002.
Dos vinte e tantos carros que tive, foi o pior e acredito que o nunca neste país teve um carro tão ruim como ele.
Tive vários desgostos e muita despesa.
Ele era tão ruim, mas tão ruim, que seu apelido aqui em casa era “bonitinho mas ordinário”.
Na época, cheguei a torcer para a GM ir a bancarrota.
Tive quatro carros novos da GM, mas depois dele, foi o fim.
O que tens a dizer dele?

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