Quem gosta de dirigir tem curiosidade de estar ao volante de qualquer coisa com rodas, de esportivos a ônibus rodoviários
Sei lá o porquê, mas um dos meus sonhos de criança era dirigir um chassi de ônibus. Só o chassi, sem a carroceria. Antigamente, lá nos idos dos anos 70 e 80, você sempre via essas coisas estranhas em rodovias paulistas, principalmente na Via Anchieta, que liga a capital ao litoral.
Os chassis de ônibus eram produzidos ali na Mercedes-Benz, que fica no trecho do planalto da própria Anchieta, e iam rodando, talvez para serem embarcados no Porto de Santos para outros países. Nunca soube ao certo a logística desses deslocamentos. Só sei que eles viviam povoando as estradas e os meus sonhos de infância.
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Era sempre um chassi, sem nenhum acabamento, com toda a parte estrutural de longarinas, motor, câmbio e eixos à mostra. O motorista se sentava numa improvisada cadeirinha de madeira, tipo aquelas de botequim, amarrado por um cinto de segurança que nem parecia retrátil… Além do cinto, ele tinha só mais duas proteções: uma lâmina vertical de cerca de 1 m2 à frente do painel (de vidro ou acrílico, confesso que não sei), como se fosse a bolha de uma motocicleta, só pra protegê-lo de pedriscos arremessados por outros veículos. Ah, e usava capacete. E eu achava aquilo o máximo.
Aliás, no decorrer da minha vida, eu fiz questão e tive gosto por guiar TUDO o que tivesse volante de direção (ou guidão), motor e rodas. Qualquer coisa. Já guiei carros, karts, fórmulas (Ford, Chevrolet, 3), buguinhos Fapinha, gaiolas, picapes, motos, patinetes, scooters, triciclos (aqueles By Cristo, com motor AP), quadriciclos, tuk-tuk, caminhões (dois eixos, trucados e cavalos-mecânicos), ônibus urbanos, articulados e rodoviários, tratores, empilhadeiras e guindastes. Já guiei até Gurgel BR-800 e Chevette Junior – não há muito o que se orgulhar nesses últimos dois exemplos.
Vale a lembrança: uma vez, entrevistando o Comandante Rolim, fundador da TAM, ouvi uma frase emblemática: “quem gosta de carros é porque tem medo de motos ou nunca teve a chance de pilotar um avião”. Tendo (quase) a concordar com ele. Avião deve ser bem legal, também.
Corta para 2010.
Áreas de Comunicação de grandes montadoras são regidas por budgets anuais. Você se compromete a gastar xis no ano com as respectivas atividades e eventos. E não pode estourar, de jeito nenhum. Calha de acontecer, um ano ou outro, que o ciclo de novos produtos se imponha sobre a verba disponível e… falte grana.
Eu trabalhava na Mercedes-Benz e tinha o E350 Coupé pra apresentar à imprensa, mas o dinheiro estava escasso. O Marketing da marca, por sua vez, só havia conseguido dois carros para test-drive. Ou seja, nada. Simultaneamente estava chegando importado ao Brasil o novo Actros, caminhão-trator top de linha da marca. Era a Classe S dos cavalos-mecânicos: 400 cv, câmbio automático, ESP.
Sempre me pautei por pensar fora da caixa, embora nunca tenha abdicado do princípio básico, como profissional de Comunicação Corporativa, de bolar eventos que tivessem atratividade para os jornalistas. Acabei formulando um evento diferente, que resolveria q questão da verba curta e, de quebra, teria grande apelo corporativo: a MB era a única marca que atuava no Brasil em quatro categorias completamente distintas de veículos (carros de passeio, vans, caminhões e ônibus). Acho que ainda é, até hoje.
Por que não mostrar tudo isso junto??
Bem embalada, nada pareceria mais interessante do que realçar essa pluralidade. A área de Caminhões, por sua vez, tinha verba sobrando. Por que não reunir todos os targets de jornalistas e engrandecer a marca com essa mensagem institucional? Meu chefe logo topou. Faltava alinhar o tema com as respectivas áreas internas da companhia que, não me pergunte o porquê, nunca haviam trabalhado totalmente juntas: caminhões, ônibus, vans, automóveis e engenharia.
Quando fiz as apresentações internas, essas áreas se entreolharam com aquela sensação de orgulho, tipo “só a Mercedes tem porte pra fazer um evento desses”. E compraram a ideia. E resolveram entrar pra valer. E aí… a mão dos caras era beeeeem pesada. No dia do evento, a Mercedes disponibilizou cerca de 100 (isso mesmo!) veículos para o test drive. Eram as quatro famílias completas, incluindo ônibus urbanos, rodoviários, caminhões pesados, médios, leves, toda a linha Sprinter, além dos carros de passeio. O evento foi batizado de Mercedes-Benz Brand Experience.
O segredo para que o evento fosse bem-sucedido estava no test-drive. Eu apostava firmemente nisso. Sabia que, assim como eu, vários coleguinhas jamais haviam tido a oportunidade de pilotar veículos tão diferentes, ainda que aquilo só servisse como uma grande curiosidade. Mas onde fazê-lo? Usar um autódromo parecia o mais adequado, quando uma das agências de eventos que participava da concorrência chega com uma ideia ge-ni-al: usar o trecho sul do rodoanel (liga a Via Anchieta à Régis Bittencourt), ali mesmo, pertinho da fábrica da Mercedes. Ele estava pronto, mas não havia sido inaugurado. A agência havia conseguido autorização para rodar na nova rodovia. Novinha. Larga. 3 ou 4 faixas. Asfalto tinindo.
Perfeito! Você receberia os convidados dentro de casa, na própria planta de São Bernardo do Campo, e depois se deslocava só 7 ou 8 km até o local do test-drive, onde todo o line-up da marca estaria perfilado na beira da pista. E lá fomos todos nós. Chegando ao rodoanel, a ordem era simples: “guie o que você quiser”. Cada veículo tinha um instrutor da fábrica para informar dados técnicos e tirar dúvidas até de como conduzi-los.
Sem contar a emoção a olhos vistos de jornalistas mais experientes que cobriam Veículos Comerciais (e nunca tinham andado em velocidades mais altas em automóveis), ou de jovens repórteres da área de carros narrando a experiência de manobrarem um bitrem com 45 toneladas de carga, o ponto alto do evento foi quando eu ia começar a apresentação técnica do E350 Coupé (não esqueça que tudo nasceu por causa dele). Consegui criar uma plateia de mais de 140 jornalistas para degustar a chegada do novo modelo. Parávamos todos os veículos de test-drive para que os jornalistas assistissem à apresentação de conteúdo.
Eis que o O500 RSD (o ônibus rodoviário mais luxuoso da linha) não parava de rodar. Chega a mensagem pelo rádio: “tem 5 jornalistas que se recusaram a parar o ônibus”. Fui lá pessoalmente para interceptá-lo e ouvi a seguinte frase: “você acha que eu vou parar de guiar esse ônibus para ouvir as besteiras que você tem pra falar sobre a Classe E? Depois você me explica como é o carro”. Me expulsaram dali e voltaram para o rodoanel. Eram “apenas” os diretores de redação de Quatro Rodas (Sérgio Berezovsky), Autoesporte (Marcus Gasques), Motor Show (Douglas Mendonça), Oficina Mecânica (Josias Silveira) e Car&Driver (Luiz Guerreiro), as cinco revistas de carros da época e um claro indício do sucesso do evento. Os caras não queriam largar aquele osso de jeito nenhum.
(Você já guiou um ônibus rodoviário? Diria que poucas coisas que dirigi na minha vida foram tão incríveis. Até eu não pararia pra me ouvir e preferiria ficar guiando o RSD.)
Guiar é algo que desperta paixão em algumas pessoas. Eu pressentia que isso ocorreria. Tenho certeza de que, se você for falar com cada um deles 15 anos depois – exceção feita ao saudoso Josias, que nos deixou alguns anos atrás –, eles podem nem lembrar dos carros que testaram no mês passado. Mas nunca se esquecerão da experiência de terem pilotado o RSD.
Do mesmo modo que há coleguinhas que cobrem Caminhões que, até hoje, mencionam da emoção de acelerar um C63 AMG. “Primeira e única vez que eu fui a 200 km/h, Edu…” Não só o evento foi memorável, como o recado da relevância institucional da marca da estrela foi muitíssimo bem dado.
E eu, ora, de quebra, realizei meu sonho de criança. Ah, você não acha que eu ia deixar escapar a chance, né? Quando os jornalistas foram embora, a equipe de apoio começou a remover aqueles 100 veículos de test-drive de volta à fábrica da Mercedes. Menos um. Peguei um chassizão urbano e fiquei rodando pelo rodoanel por mais de meia hora. E sem capacete.
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