Fiat 147: o carro que não estava pronto para o Brasil

Fiat 147 chegou em meados dos anos 1970, inaugurando as operações da marca italiana e o "incompreensível" cronograma de manutenção

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Fiat 147 era inovador em aspectos mecânicos e também na cultura da manutenção preventiva (Fotos: Fiat | Divulgação)
Por Douglas Mendonça
Publicado em 21/12/2024 às 15h00

Em 1976, uma prodigiosa marca italiana fabricante de veículos, bem tradicional, lançou por aqui seu primeiro hatch: um pequeno e moderno carro que surpreendeu o país em termos de tecnologia. O tal modelo tinha características técnicas bem interessantes: foi o primeiro nacional com motor e câmbio transversais, era pequeno por fora e bem espaçoso por dentro, trazia pneus radiais de série e um sistema mecânico que mostrava um baixíssimo consumo de combustível para a época.

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Mas o grande problema do carrinho ítalo-brasileiro é que ele seguia uma filosofia diferente na manutenção: ao invés dos serviços corretivos, utilizados por nós por décadas (quebrou, consertou), ele seguia a cartilha das revisões preventivas. Ou seja, a cada tantos mil km, ele exigia uma manutenção programada. Mas os brasileiros estavam acostumados a reparar os carros só quando ele parasse, quebrado, fazendo a famosa manutenção corretiva, coisa típica dos Fuscas. O italianinho não gostava muito disso, e aí começaram os problemas. Muitos deles, inclusive, seríssimos…

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Fiat 147 foi o primeiro carro nacional com motor e caixa transversais

A correia dentada do eixo comando de válvulas, por exemplo, só era substituída pelo motorista brasileiro quando ela se rompia, e não a cada 30 ou 40 mil km como mandavam as diretrizes da manutenção preventiva. E olha que, quando ela quebrava, os estragos eram graves: os pistões chegavam a bater nas válvulas abertas e, dependendo, quebravam o motor inteirinho! Esse é só um dos pequenos exemplos dos problemas que foram criando uma má imagem daquele projeto europeu de carro compacto.

Coifa das juntas homocinéticas, ninguém nem olhava. Muitos motoristas sequer sabiam que ela existia, e quando sua borracha estragava, entrava sujeira dentro da homocinética e ela começava a bater. Em um dado momento, a quebra era inevitável. Tudo isso fazia parte da tal manutenção preventiva, que ninguém fazia.

Monobloco do Fiat 147 era frágil demais

Além disso, o carro apresentava características de projeto que não foram pensadas para a qualidade das nossas ruas e estradas. Com uma carroceria monobloco frágil, ele era excelente nas vias europeias, que mais pareciam tapetes, mas sofriam na nossa buraqueira, desníveis e chãos de terra. Bastava trafegar atrás de um desses carrinhos para observar a carroceria mexendo para um lado e a tampa do porta-malas para o outro. Ele se torcia por inteiro, o que acabava atrapalhando seu funcionamento.

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Monobloco do Fiat 147 era tão frágil que peças móveis como portas e tampa do porta-malas desalinhavam com a carroceria

Explico: seu trambulador, por exemplo, sofria muito com a torção excessiva do monobloco. Com isso, as trocas de marchas eram feitas quase que por magia. Quando você, por exemplo, ia subir de 2ª para 3ª, desengatava-se uma marcha, fazia o “H” para a outra, e ela não estava lá! Dependendo, o movimento da carroceria torcendo era tão grande que o mecanismo da alavanca para o câmbio, por varão, já não encontrava mais o engate da terceira. Era mais ou menos questão de sorte, e as melhores passagens eram feitas com o carro em piso plano, sem muita ondulação.

Dirigir esse carrinho era uma verdadeira aventura. Você pensa que os problemas acabaram por aí? Não, definitivamente não. Na suspensão dianteira, do tipo McPherson, os projetistas, ao invés de utilizarem um triângulo inferior, optaram por um braço simples. Com o tempo, freando e acelerando, sua manga de eixo começava a alterar constantemente o cáster das rodas dianteiras. A roda mexia para frente e para trás, basicamente. A solução foi adaptar a barra estabilizadora como tensor das suspensões da frente.

Sem manutenção preventiva, era um bomba

Tudo ótimo. Porém, com o passar do tempo, surgiam folgas nas buchas e borrachas da barra estabilizadora, e aí não só as rodas, mas todo o conjunto passava a se movimentar para a frente e para trás. Nem é preciso falar que isso alterava totalmente a geometria da suspensão, e afetava muito a dirigibilidade do hatch. E existiam os extremos piores: como as longarinas onde eram fixadas à barra estabilizadora eram frágeis, com o tempo elas apodreciam. Assim, tudo ficava muito mais perigoso…

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Em pisos planos era fácil trocar de marcha, mas bastava entrar num piso irregular para o trambulador “se perder” totalmente

Claro, se fossem feitas as manutenções preventivas, qualquer mecânico perceberia as folgas das buchas ou veria o enfraquecimento das longarinas. Só que nossa cultura automotiva era a de rodar até quebrar, e depois resolvia-se na oficina. Toda a segurança e direção do carrinho eram prejudicadas com essa cultura das revisões corretivas.

E existia ainda outro calcanhar de Aquiles do tal hatch de projeto italiano, acredite! O câmbio chorava mais do que viúva em enterro. Tamanho era o barulho que ele fazia, era difícil até mesmo conversar com outro ocupante no interior. Arranhar marchas? Isso era absolutamente normal nele, principalmente na hora de colocar a 2ª ou a 3ª. E esse era um problema insolúvel, já que aquela transmissão manual era, de fato, ruim. Durava pouco e tinha falhas de projeto. Até por isso, era absolutamente normal abrirem e repararem o câmbio desses carros a cada 30 ou 40 mil km. Dependia do cuidado do motorista na condução. Catastrófico!

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Interior do Fiat 147 era moderno e com amplo espaço interno

Por essas passagens, pode se ter uma ideia do que é ter um desses carrinhos no Brasil, principalmente aqueles da primeira leva de produção nacional, entre 1976 e 1978 ou 1979. Ele era econômico? No consumo de combustível, sim, gastava bem pouca gasolina. Mas, em contrapartida, aquele que não cuidasse muito bem da sua mecânica, seguindo as revisões programadas, acabava amargando maus momentos como proprietário do hatch. Se você bobeasse, ficava na rua ou na estrada a bordo dele.

Mas, devo admitir, o tal hatch de projeto italiano foi um marco na nossa indústria automotiva. Ele inovou em vários conceitos, e quando corretamente mantido, atendia bem às necessidades do nosso público, oferecendo inclusive espaço e conforto para famílias com quatro ou cinco integrantes. Enfim, histórias que não podem ser simplesmente apagadas…

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1 Comentário
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Santiago 21 de dezembro de 2024

Se hoje vários modelos atuais abrem o bico por desleixo do dono, que depois se exime da culpa xingando o veículo e a montadora, imaginem então naqueles tempos. Dai boa parte da má fama (por vezes injusta) rotulada ao 147 e por tabela à Fiat, em uma indústria brasileira cujos produtos à época não eram exatamente uma referência de confiabilidade.
Já uma façanha heroica da Fiat, aonde cabem-lhe todos os méritos, foi conseguir instalar-se e ofertar uma nova opção em um Brasil então dominado pelo implacável Tripólio VW GM Ford.

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