Gordini: quando venda era uma realização maior que a compra

O Gordini era um carro tão frágil que era apelidado de “desmancha sem bater” em alusão ao famoso leite em pó Glória

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Desenvolvido pela Renault, o Gordini chegou ao Brasil pelas mãos da Willys-Overland (Fotos: Renault | Divulgação)
Por Douglas Mendonça
Publicado em 02/02/2025 às 13h00

Vamos falar do “inesquecível” Gordini. Lançado na Europa em 1956 e três anos depois aqui no Brasil, falamos de um pequeno carrinho da categoria sedã. Foi um dos primeiros automóveis da nossa indústria automotiva, quando o então presidente Juscelino Kubitschek tinha como meta, no final dos anos 1950, acelerar a industrialização do país. O tal carrinho atendia bem às necessidades das famílias locais da época: custava barato, consumia pouco combustível, mas era, na verdade, uma caixa de fósforo, bem pequeno e frágil.

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Tinha um motor minúsculo, com 31 hp SAE da época (algo em torno dos 23 cv atuais). Para piorar ainda mais, o modelo de origem francesa trazia apenas três marchas no câmbio manual. A primeira só era engatada com o veículo parado, afinal não era sincronizada.

Com tão pouca potência e transmissão limitada, já deu para imaginar a performance dessa “máquina” com quatro ocupantes e bagagem, né? Na realidade, uma verdadeira piada. Não precisa ser engenheiro para notar que o pequeno sedã se arrastava ao invés de acelerar.

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Na Europa, o carrinho era vendido como Dauphine, mas por aqui foi rebatizado com nome do preparador que envenenava o carrinho na França

Na Europa, como rodava por regiões planas, o carrinho até dava conta do recado. Mas, nas ladeiras e rampas brasileiras, ele gemia! Muitas vezes, era fraco a ponto de não vencer uma subida: faltava força e marcha.

O interessante é que as suas propagandas da época, de 1959, 1960 e 1961, falavam de uma carroceria sólida, de um carro muito resistente e adequado ao Brasil, suas altas temperaturas, piso esburacado e aclives infindos. A realidade era outra: quando o público começou a rodar com o tal carro, tentando provar o que diziam os anúncios, todas aquelas vantagens caíam por terra. O pequeno carro começou a desmontar a partir dali.

Gordini era uma tragédia sobre rodas

Só para que se tenha uma ideia, na época, entre final dos anos 1950 e início dos anos 1960, existia um leite em pó da marca Glória. Como slogan, destacavam que ele era um dos únicos que “desmanchava sem bater”: isso significava que bastava jogá-lo na água para criar leite líquido, um processo bem mais fácil do que o com produto da concorrência. Não demorou muito para os brincalhões de plantão associarem esse slogan do leite Glória ao tal sedan de origem europeia: logo o carro ganhou o apelido nacional de “Leite Glória”, afinal desmanchava sem bater.

O baque foi pesado, afinal o carrinho ainda era novidade. Logo, foi sentido em suas vendas, que despencaram. Mas, não era só por conta do apelido: o modelo era realmente uma tranqueira. Frágil e com desempenho medíocre, para não dizer pior.

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Com apenas 23 cv era impossível subir uma ladeira com lotação máxima (Foto: Wikimedia)

Tive um tio, o Alberto, que comprou um desses sedãs em 1962, com dois anos de uso. Preço bom, negócio atraente, e o tio Alberto comprou. Na época, ele tinha esposa e dois filhos pequenos, e o carrinho atendia à família dele, também pelo bom porta-malas frontal (tinha motor traseiro).

Lembro-me que esse tio morava numa casa que tinha garagem no subsolo. Uma rampa lateral levava o carro até a rua. Até aí, tudo normal, mas o tal sedã virava atração da família inteira na hora de sair da garagem por aquela tal subida: primeiro que o motor tinha que ser aquecido até a temperatura de operação antes de tirá-lo do lugar (não podia engasgar).

Meu tio alinhava com a rampa, ia o máximo possível para trás, e dentro do carro só ia ele: com o peso da esposa e filhos a bordo, nem pensar. A família ficava esperando na calçada, lá em cima, enquanto o pai ia “buscar o carro”.

O tio Alberto colocava o carrinho em altas rotações, engatava a primeira e arrancava valente, lá de baixo. Parecia largada de corrida. Começava a subir a rampa e, já na metade, as rotações do motor iam caindo, mostrando que a força dos 31 hp estavam se esvaindo.

Quando ele estava perto da calçada, no final da rampa, o pequeno propulsor de 850 cm³ já estava de “língua de fora”, quase apagando. Aquela era a primeira prova do dia com o carrinho: depois de embarcados esposa e crianças, o peso aumentava e, claro, outras subidas por aí tornavam-se desafiadoras.

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Lado a lado as duas identidades do carrinho francês, Gordini e Dauphine, que suavam sangue para rivalizar com o Fusca (Foto: Willys | Divulgação)

O tal carrinho do meu tio, pintado de verde claro, tinha um motor de partida que nunca funcionava. Nesse caso, a partida era a base da boa e velha manivela, que era a mesma peça da chave de roda. Se o carro já estivesse na rua, todo mundo entrava a bordo, a manivela já ficava “de jeito” no porta-malas, e no parachoque traseiro estava o buraco para engatar a ferramenta.

No primeiro tranco na manivela, o motor acordava. Meu tio guardava a peça, sentava-se no seu posto de motorista e, como sempre, colocava o motorzinho para girar alto na hora de sair do lugar. Tenebroso.

Nem é preciso dizer que, em seis meses, meu tio já tinha trocado aquele meio de transporte por algo melhor e que, pelo menos, tinha torque para carregar seu peso e o dos ocupantes. Em terras de muitas subidas, como em Minas Gerais, era complicado: se precisasse reduzir de 2ª para 1ª numa subida, era preciso pará-lo totalmente e torcer para conseguir sair novamente. Não teve força? Não tinha jeito a não ser descer todo o aclive de ré, embalar lá de baixo e manter a 1ª do início ao final da subida.

Willys deu um upgrade no Gordini, mas a fama já estava feita

O sedã de projeto francês era fabricado, aqui no Brasil, por uma outra empresa, norte-americana, que não era a original dele. Logo perceberam que aquela primeira versão era uma furada, por isso se apressaram para lançar uma atualização com motor (bem) mais potente (40 hp SAE, ou cerca de 30 cv ABNT de hoje), quarta marcha no câmbio manual, 1ª sincronizada e até um novo nome, para esquecer o antigo completamente.

O design da carroceria era praticamente o mesmo, porém com estampas mais espessas e lataria mais sólida, o que, aí sim, melhorava a rigidez do modelo. Também havia freios melhores.

Esse carro, depois das modificações e do novo nome, ganhou uma história a parte na nossa indústria automotiva. Obteve muito mais sucesso que a do primeiro, raquítico e frágil, que ainda conseguiu ficar em produção até 1962. Histórias da nossa indústria.

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12 Comentários
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Eduardo 5 de fevereiro de 2025

Meu pai teve um, branco com interior vermelho. Não sei o ano, mas já era o Gordini II, 4 marchas, 6 volts que no frio a bateria não supria o arranque. E não era um problema só do Dauphine ou Gordini. Tudo que era 6 volts dava trabalho na primeira partida do dia, principalmente no frio. E pegar a manivela não era opcional! Ou então deixava o carro “dormir no cabide”! Me lembro de um motorista que foi ajudar meu e falou que ia adiantar ele um pouco pra facilitar, pegou na manivela e rodou com vigor. Tomou um contra golpe e quebrou o braço. Meu pai preferia pré aquecer a admissão com uma latinha de álcool que ele posicionava “estrategicamente” e acendia com uma varetinha. Minha mãe morria de medo. mas ai o carro pegava. E quem usava era minha mãe que trabalhava do outro lado da cidade. Meu pai trabalhava ao lado de casa. Então os BO’s eram corriqueiros. Lembro que foi feita uma modificação neste Gordini q pouco resultado prático teve: o sistema elétrico foi convertido para 12 volts. Mas os problemas eram diários. Em 68 venderam ele e compraram um VW sedan 1300 12 volts branco. Baita Upgrade na época! E fim dos problemas. Daí pra frente o problema era eu, que gostava muito de carro! 🤭

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renato 3 de fevereiro de 2025

Acho que o escrevente da matéria só ouviu falar dos Dauphines e Gordinis , nunca dirigiu nenhum .

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Luiz Sá 3 de fevereiro de 2025

Na verdade comentário fala mais do Dauphine. Os Gordinis vieram depôs, sendo o I, II, III e IV. Os Gordinis não desmancharam como leite em pó não. Graças a sua robustez, estou vivo hoje. Em 1966, capotei, um Gordini IV, foram 4 capotadas, sem que nem eu e nem um amigo que estava comigo sofreu algo. Saímos, destombamos ele e fomos embora.

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Eduardo José 3 de fevereiro de 2025

Eram três, o Renault Dauphine três marchas depois o Renault Gordine e pôr último o Renault 1093 ambos quatro marchas.
Eu tive dois Gordine e um Renault Interlagos Berlineta, que era o Renault Alpine. Tempos bons.

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Alfredo Motta 3 de fevereiro de 2025

Não era bem assim. Meu pai teve um Dauphine 1963 branco com interior vermelho. Nosso vizinho e amigo que morava em frente tinha um Gordini cinza chumbo. Lembro que fomos com os dois carros para Santos pela Anchieta com quatro pessoas em cada mais bagagem e ele desceu e subiu a serra sem problemas. Meu pai nunca reclamou de sua potência, ele que já tivera alguns carros americanos.

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Ricardo 3 de fevereiro de 2025

O comentário de José Bittencourt foi mais esclarecedor que a matéria.
Esse exemplar do tio do escrevedor, que era um Dauphine) devia ter problemas sérios de forma particular. O Gordinni era a versão melhorada, justamente pelo escritório do engenheiro mecânico italiano chamado Gordinho).
Esse projeto serviu de base para a linha Corcel (quando a Ford comprou a Wyllis, detentora da Renault).

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Paulo 4 de fevereiro de 2025

Esqueceu de dizer que o fusca 1200 tinha essa mesma potência., (do Dolphini) e que o Gordini era mais potente que o fusca 1300. Meu pai teve um Gordini 63, o primeiro ano com 40 HP de emoção, ficou com ele por sete anos sem desmanchar, ao contrário quando vendeu parecia novo.

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Luciano Weidlich 3 de fevereiro de 2025

Errata….ficou em produção até 1968, com o gordini III

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Josmar Machado de Camargo 3 de fevereiro de 2025

Meu pai teve um Dauphine 1963 azul claro. Viajamos de Barretos/Sp ao Rio de Janeiro em 3 adultos e 4 crianças e não lembro de meu pai reclamando do desempenho do carro. E tinha muito fusquinha que não conseguia acompanhar ele não!

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José Bittencourt 2 de fevereiro de 2025

A fábrica era a Willys Overland, o projeto de origem francesa, da Renault. O carro foi lançado na Europa como “Dauphine”, q quer dizer “princesinha” em francês., se não me engano em 1956. Era um carro compacto feito para competir com o Volkswagem 1200 q era um sucesso de vendas. O carro era, de fato, uma atualização do Renault 4CV, lançado no período pós guerra, com diversas partes reaproveitadas (daí o arranque manual citado no texto já q o motor era basicamente o mesmo do anterior, com a potência um pouco aumentada). A atualização foi lançada em 1964 aqui, foi chamada “Gordini”, um escritório de projetos esportivos na França que mexia no projeto carro transformando o original “Dauphine” numa versão esportiva.

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Alexandre 2 de fevereiro de 2025

Na verdade a primeira versão era o Dauphine. O Gordini já era a versão “melhorada”.

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Colle del Celio 2 de fevereiro de 2025

Seu antecessor, o Juvaquatre, também tinha motor fraquinho, só que tinha mecânica e lata forte.
Quando eu mais dois amigos íamos passear com ele nos fins de semana, precisávamos descer e empurrá-lo nos aclives que surgiam. Interessante, é que o Ford A de 1931, subia até parede.
Isso foi na década de 70.
Quanto ao apelido do Dauphine, pensava ser ironia.

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