A realidade por trás das modelos do Salão do Automóvel
Modelos ao lado dos carros expostos nos salões representam apenas a parte mais visível do machismo que exala de todos os poros do meio automotivo
Modelos ao lado dos carros expostos nos salões representam apenas a parte mais visível do machismo que exala de todos os poros do meio automotivo
“Não é nada fácil. Os pés doem demais, fora o cansaço, as brincadeirinhas chatas e sem graça, ouvir aquele piadinha clichê: ‘Se levar o carro a modelo vem junto’. Sem contar a dor na bochecha no final do dia de tanto sorrir o dia todo”, conta uma das modelos do Salão do Automóvel de São Paulo.
O desabafo no Instagram, logo que o evento começou, serve como porta para compreendermos algo que pode passar batido enquanto admiramos o esportivo da vez, o SUV de ocasião, um conceito futurista ou as modelos ladeando os carros nos salões ao redor do mundo: o machismo no mercado de automóveis.
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No último Salão de São Paulo, no mês passado, as condições de trabalho geraram reclamações das modelos, que exibiram fotos de pés machucados por causa do uso prolongado de sandálias cheias de tiras e saltos altos.
A explicação para o machismo, que se torna latente e explícito em grandes eventos, como ocorreu com as modelos no Salão do Automóvel, segundo a pesquisadora em comunicação e gênero da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Juliana Soares, é histórica.
“Esse é o processo de perpetuação da desigualdade, e sua origem é o lugar da mulher na família patriarcal. Seu estereótipo é um ser sexualizado, que está ali para servir. O produto dela é o próprio corpo. Isso raramente acontece com o homem”, afirma a pesquisadora.
Na análise de Juliana Soares, a persistência de lugares desiguais de poder entre a mulher e o homem na sociedade ocorre de forma a manter o privilégio dos homens. No caso dos automóveis, essa desigualdade aparece na questão do protagonismo.
“Ela não vai dirigir o carro nem ser uma pessoa interessada em comprar o carro, não se parte do pressuposto de que a consumidora poderia ser uma mulher. O consumidor em potencial é um homem, e a mulher seria um valor agregado ao produto”, analisa Juliana.
O protagonismo, segundo Juliana, é sempre do homem atrás do volante na propaganda, em primeiro plano, e a mulher no assento do passageiro, em segundo plano.
Nos salões, analisa a pesquisadora, a mulher é contratada como um enfeite para agradar aos homens, enquanto ao mesmo tempo, outras não se sentiriam bem vindas no evento.
Esse comportamento, além de machista, é uma ideia errada economicamente. A última pesquisa feita pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de São Paulo (Fecomercio SP) revela que 58% das decisões de compra de um automóvel é tomada pelas mulheres e 45% das compradoras são do sexo feminino.
“É uma divisão cultural, um valor que vem perpetuando diversas decisões, mesmo que na vida isso não faça mais sentido. É a projeção de uma mulher e a projeção de um homem, e o carro ainda está ligado ao homem”, entende Juliana.
Concepções machistas no meio automotivo e propagandas direcionadas para o público errado não são a pior consequência delas. Quem já visitou um evento automotivo sabe que há uma divisão de papéis que coloca mulheres como um adereço para os veículos em exposição.
Quando vemos essas imagens, e especialmente porque as vemos desde a infância, passamos a acreditar que o mundo é assim.
Afinal, a cultura está relacionada à comunicação através dos tempos. O problema é que os filmes e propagandas raramente correspondem à realidade, o que gera uma situação injusta para algumas pessoas — e privilegiada para outras.
Portanto, a parte mais maligna do machismo automotivo é também silenciosa, se concentrando no consumidor imaginário para o qual um veículo é vendido e anunciado.
Ainda que uma mulher assista a uma propaganda machista, ela só vai conseguir se interessar pelo veículo se ignorar a ofensa que acabou de receber, inesperadamente, veiculada pelo meio de comunicação.
É uma ideia comum a de identificar o universo dos carros como uma área masculina. Nas imagens populares, como em filmes e propagandas, geralmente há um homem atrás do volante e uma mulher — bonita — no assento do passageiro.
Exemplos disso são inúmeros, como estas propagandas do Chevrolet Onix ou Fiat Palio, dois dos veículos mais vendidos no país, ou ainda na conhecida série de filmes do James Bond.
Enquanto as promotoras têm que suportar uma jornada de nove horas de pé, calçadas em salto alto, segurando um sorriso no rosto, os visitantes do sexo masculino passam cantadas, fazem piadas insinuantes, ou pedem para tirar uma foto — isso quando não ultrapassam esses limites.
A modelo Tamy Gianucci, que trabalhou como promotora na última edição do Salão do Automóvel de São Paulo, afirma que o mais difícil é a exigência física da rotina.
Aos 28 anos, Tamy trabalha em eventos há cinco anos e relata que os refletores que iluminam os veículos queimam a pele, a ponto de já ter ocorrido que uma mulher abandonasse o trabalho porque não o suportava, o que não é incomum.
“Esse foi meu último evento por causa das questões físicas e psicológicas. Tem gente que é muito grossa e já chega falando ‘Sorri aqui pra mim’”, afirma a modelo.
A promotora destaca que desenvolveu duas varizes durante o último Salão e que não pretende mais trabalhar com eventos. Junto às exigências e expectativas colocadas sobre as modelos do Salão do Automóvel, há também a falta de respeito por parte do público.
Segundo Tamy, a desgastada piada do “se comprar o carro a modelo vem junto?” também é péssima.
A modelo lembra de um visitante insistente que pedia para tirar uma foto com ela durante o intervalo de seu trabalho. Ao responder que não, pois estava em seu descanso, foi contestada: “Para que você é paga, então?”questionou o visitante.
Para Tamy, muitos homens pensam que as modelos do Salão do Automóvel estão disponíveis para eles, como em um catálogo, da mesma forma que os automóveis ali expostos.
O sorriso obrigatório é um dos lados mais perversos desse machismo escancarado, como destaca a pesquisadora da UFMG, Juliana Soares:
“Penso que o sorriso é associado à docilidade, característica muito valorizada nesse modelo de feminino do qual tratamos. Não basta que o corpo feminino esteja colocado como acessório para carros, é preciso que além de presente, essas mulheres pareçam felizes por estar ali”, explica ela.
O machismo no meio automotivo não é reduzido à relação entre visitantes grosseiros, montadoras que objetificam as modelos e táticas comerciais equivocadas. Outra ponta latente do preconceito é a ideia de que mulheres dirigem mal, ou pior que homens.
Para acreditar que existem pessoas que realmente pensam isso, basta uma pesquisa no YouTube com os termos “mulher ao volante”. O resultado são diversas motoristas incompetentes em ação, em vídeos que pretendem comprovar a ideia de que mulheres dirigem mal.
É claro que uma coletânea da mesma natureza também poderia ser feita com homens, mas não se faz isso porque não temos a cultura que propaga o ditado: “homem ao volante, perigo constante”. Porém, se nos baseássemos no levantamento de acidentes de trânsito em 2015 feito pelo seguro DPVAT, controlado pela Seguradora Líder, o ditado seria pertinente.
Segundo os dados do órgão, os homens foram responsáveis por 75% das indenizações pagas em decorrência de acidentes, enquanto as mulheres causaram apenas 25%. Em casos de óbito, a desigualdade é ainda maior, com 82% por cento sendo causados por homens, e apenas 18% por mulheres.
Se você é homem e chegou até o final dessa matéria, pense várias vezes antes de xingar uma mulher no trânsito.
Também reflita antes de passar uma cantada nas modelos do Salão do Automóvel, antes de contratar uma promotora para o seu evento, antes de endossar a propaganda do próximo lançamento. Nem sempre as coisas são do jeito que te disseram, e é preciso desconstruir esse preconceito.
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Acabei chegando aqui, justamente por ter ido ao salão esta semana e imaginado que haveriam relatos assim. Foi a primeira ( e muito provavelmente ultima) vez que fui e ao menos para mim foi dificil nao pensar no fato de passarem horas em pé, das fotos, cantadas e os sorrisos. Foi bacana ver os carros que só via em filmes, jogos e tv. Mas achei estranho toda essa coisa da mulher como adorno. É curiso ver esse meu mundo masculino. Confesso que em alguns momentos me perguntei sobre a utilidade de tirar fotos com as mulheres. Nao desmerecendo seu trabalho, mas nem as conheço, de que valeria uma foto simplesmente por sua beleza, será que isso reforçaria minha imagem de macho. Sei lá, fato é que vivo sem entender muita coisa nesse mundo, talvez o problema seja eu…
Só pra constar,essa pesquisa de acidentes de trânsito é de se contestar, pura matemática, sabe por que?
Va na avenida mais proxima de sua casa,escolha a que quiser.
Comece a contar quantos motoristas são homens e mulheres a cada 10 veículos,carros,motos,ônibus e caminhões, pois todos entram na estatística anual.
Faça quantas amostragens quiser,e no horário que quiser em dias alternados.
Você irá se surpreender
A cada 10 veículos, apenas 2 motoristas são mulheres, na média.
Agora faça as contas,preciso dizer mais alguma coisa????
Isso é matemática, simples, lógica e incontestável!!!
Mas nada que justifique chingar alguém,vale pra homens e mulheres também.
Também sou contra esses babacas que desrespeitam as modelos,já não basta o sofrimento físico delas num salto alto por tantas horas?
Deixem as modelos em paz e apreciem os carros calados ok pessoal.
Quem me atropelou na faixa de pedestre e me deixou sequela pra sempre no meu joelho foi uma mulher,então parem de ficar jogando tudo que é ruim pro sexo masculino,paz pra todos,estamos precisando,somos todos iguais
Vou estar no salão do automóvel 2018.
É claro que não vou deixar de olhar aquelas mulheres bonitas, mas não farei comentários.
Um Bommmm trabalho a todos