Douglas Mendoça 5.0: o misterioso sedã que voava baixo e bebia pouco
Alto desempenho e baixo consumo de um sedã de testes escondia uma peça de alta performance usada num esportivo alemão
Alto desempenho e baixo consumo de um sedã de testes escondia uma peça de alta performance usada num esportivo alemão
Transcorria o ano de 1992, e o mercado brasileiro era inundado por novos modelos importados, graças a liberação de importação pelo governo. Os fabricantes nacionais se esforçavam em atualizar os seus produtos para fazer frente à concorrência europeia, americana, japonesa e coreana. Na época, eu era repórter especial na Revista Quatro Rodas, e um dos responsáveis pelos testes de desempenho e consumo dos carros que avaliávamos mensalmente.
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No mês de março de 1992, a revista publicou a avaliação de um sedã, fruto de uma fusão de uma marca alemã com outra norte-americana, uma união que só existia aqui na América Latina. E aí, era uma bagunça organizada: a marca alemã vendia carros projetados pela marca norte-americana (utilizando outro nome e seus logos), e vice-versa (modelos de projeto alemão vendidos pela americana). A engenharia, que comandava a tal bagunça organizada, era alemã, enquanto a parte administrativa e financeira ficava por conta da marca norte-americana.
Achou difícil entender como isso funcionava? Para nós, jornalistas da época, também era. Mas, as duas marcas se deram bem, enchendo o showroom de suas respectivas concessionárias com uma boa diversidade de produtos, alguns europeus e outros nem tanto.
Nessa época, lá na Quatro Rodas, pegamos para teste o tal sedã, que era fabricado pela marca alemã, mas com nome próprio e o logo da marca norte-americana. Para atender as leis de emissão de poluentes da época, em 1992 era necessária a utilização de conversor catalítico em todos os carros 0 km vendidos no Brasil. Era o catalisador, um recurso que realmente fazia os carros poluírem menos, mas, em contrapartida, criava uma contrapressão no sistema de escapamento, fazendo com que os motores perdessem desempenho em seus regimes mais altos de rotações.
Mesmo assim, o sedã de luxo que testamos foi à pista de testes e fez bonito: cumpriu a prova de aceleração de 0 a 100 km/h em um tempo brilhante, e atingiu uma velocidade máxima quase igual à dos modelos injetados, bem mais potentes. Esse que avaliamos era um 2.0, de 8 válvulas, com carburador de corpo duplo. Tamanho o brilho, chamou nossa atenção: como era possível um motor de oito válvulas, carburado, utilizando gasolina e já com catalisador, andar tão bem quanto um 2.0 injetado?
A desconfiança cresceu quando analisamos os números de consumo, que eram surpreendentemente bons, principalmente para um sedã pesado (para a época), equipado com carburador. No mesmo instante, ligamos o bom e velho “desconfiômetro” natural, aquele que se ativa junto do famoso “sexto sentido”. Alguma coisa estava errada!
Resolvemos, então, buscar onde estava o brilho daquele pacato sedã de luxo, que estreava sua carroceria de quatro portas. Assim como acontece nas competições, para saber se os competidores estão seguindo o regulamento previsto nas corridas, partimos para a desmontagem do motor sem consultar nem alemães, nem norte-americanos. Tendo em mãos o manual de serviço, aquele mesmo usado pelos mecânicos das concessionárias (contém todos os dados técnicos possíveis e imagináveis do carro), e utilizando o corpo técnico responsável pela desmontagem dos veículos do teste de Longa Duração, começamos pela parte de cima do cabeçote.
Saiu a tampa de válvulas, para termos acesso ao eixo comando. Logo na primeira desmontagem, bingo! Encontramos um eixo comando de válvulas em desacordo com o que descrevia o manual de serviços daquele carro. Deveríamos ter encontrado na peça o código 053.1, que constava no manual de serviço. Só que naquele carro estava a peça 049G, que, teoricamente, só equipava um modelo esportivo da marca alemã que fazia parte daquele grupo.
Partimos para as fotos, anotações e, claro, um relatório completo sobre tudo que havíamos encontrado. Aquele material foi encaminhado de bate-e-pronto para a engenharia da joint-venture. O questionamento era simples: por que aquele sedã que recebemos para teste estava com um comando de válvulas diferente do especificado pela própria fábrica?
Aquele desencontro técnico não condizia com o que estava descrito pelo manual de serviço da marca. O fato é que, com ele, o motor 2.0 8v havia sido “envenenado” para que os jornalistas publicassem em seus veículos de comunicação resultados mirabolantes na performance e consumo, bem melhores que o dos carros “comuns” encontrados nas concessionárias.
Fato descoberto, a engenharia do grupo com as duas marcas alegou que houve um descompasso entre eles terem trocado a peça na linha de montagem e o aviso à sua rede de concessionárias, que nem sabiam que o componente havia sido aprimorado na linha de produção. Basicamente, fizeram uma melhoria para todas as versões 2.0 8v daquele tal sedã, só que não avisaram ninguém, nem mesmo sua rede autorizada.
É estranho, afinal todas as alterações feitas em um veículo, seja no motor ou fora dele (estética, acabamento, plataforma, equipamentos, mecânica e por aí vai), são avisadas para as concessionárias previamente, através de boletins técnicos. Isso acontece até hoje, vale falar. Naquele caso, ninguém sabia de nada, com exceção da fábrica e do seu time de engenharia.
Na realidade, eu acredito que esse “upgrade” do comando de válvulas foi sim para melhorar os resultados dos testes do carro, enganando os jornalistas mais incautos e seus leitores. Pode ser até mesmo que a fábrica tenha se convencido de que aquela peça 049G fosse melhor para o motor 2.0 8v, até compensando as perdas pelo uso do conversor catalítico.
O fato é que a engenharia fez o trabalho, deu certo, ficaram bem quietinhos e talvez até já estivessem produzindo o sedã em série com o outro comando de válvulas. Na época, a fábrica afirmou que as concessionárias só seriam avisadas no mês seguinte da publicação da nossa matéria, ou seja, em abril. Me soou como uma desculpa esfarrapada, pois a rede autorizada já deveria saber disso há meses, principalmente em se tratando de uma peça importante daquelas. Mas, foi o que nos disseram oficialmente. Histórias da nossa indústria…
Não perca na próxima semana: a tentativa de cambalachos de uma marca de carros brasileira em seus veículos de imprensa!
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Na verdade o Santana e Versailles eram o Passat de segunda geração, B2, reestilizados. E de modo geral sempre tivemos carros europeus, até mesmo da Ford (maioria projetos da Ford Europa) e Chevrolet (projetos Opel com gravata da Chevrolet). Carros americanos foram poucos, como pro exemplo Maverick, Galaxie e Taurus.
Versalhes, um Santana que na verdade era a terceira geração do nosso Passat da década de 70 que por sua vez era um Audi 80, resumindo, muito alemão para ser americano.
Faço parte do Ford Versailles clube e realmente todos os Versailles e Santanas a partir de 93 quando ganharam o catalisador passaram a vir de fábrica com o comando 049G ou seja todos eles tem.