Douglas Mendonça 5.0: a montadora que fazia retífica na surdina

Douglas Mendonça relembra como uma fabricante de Detroit, que utilizava projetos alemães, se desdobrava para esconder defeito de seu sucesso de vendas

chevrolet monza sle 4 portas 1988 prata de frente
Eis o tal sedã norte-americano, derivado de um projeto europeu, que abria o bico precocemente nos anos 1980 (Foto: GM | Divulgação)
Por Douglas Mendonça
Publicado em 19/10/2024 às 15h00

Estes fatos repercutiram muito na década de 1980. Uma grande fabricante de veículos com origem Norte-Americana produzia um carro de projeto alemão que agradou muito o consumidor brasileiro. Tanto que, por três anos consecutivos, chegou a ser o automóvel mais vendido do mercado nacional. Uma surpresa para um veículo de porte médio que não era dos mais baratos, mas, mesmo assim, fazia com que o consumidor brasileiro se virasse para adquirir um. Foi sonho de consumo de muita gente na época.

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Mas ele escondia problemas, e problemas muito sérios, que começaram a dar mostras na segunda metade dos anos 1980, depois do lançamento da sua versão 2.0, que ocorreu no final de 1986. O tal motor mostrava baixa durabilidade mesmo quando usado em condições moderadas, e, prematuramente, precisava ser recondicionado. Até hoje não ficou esclarecido se o erro estava na má lubrificação daquele projeto, na escolha incorreta do lubrificante por parte da fabricante ou, por questões de economia, na têmpera muito fina que comprometia a dureza das peças de atrito direto.

Retífica precoce

O fato é que, com cerca de 40 mil km, as bielas começavam a “rajar” e, dependendo do regime de rotação, se ouvia o barulho da folga excessiva entre a biela e o munhão do virabrequim. Além disso, os cames do eixo comando de válvulas e seus tuchos equivalentes se desgastavam acentuadamente, o que exigia a troca do conjunto comando/tuchos na parte superior do motor. Problemas seríssimos que culminavam na obrigatoriedade de se retificar o motor bem antes do esperado.

Na época, 1988, eu trabalhava na revista Quatro Rodas, onde tínhamos uma frota própria, de carros adquiridos zero km nas concessionárias como consumidores comuns. Esses veículos rodavam normalmente até os 50 mil km e eram revisados na rede de concessionárias sem que a fábrica soubesse. No final, eram inteiramente desmontados, com peças verificadas, medidas e analisadas, seguindo critérios contidos no manual técnico da fabricante para aquele modelo de carro. Tudo muito rígido, sem margem para erros.

retífica Monza 2 0 1989 desmontado foto Luiz Pereira Quatro Rodas
Quando a Douglas Mendonça e sua equipe de Quatro Rodas desmontaram o sedã, descobriram que o carro tinha sido retificado por “cortesia” da concessionária (Foto: Reprodução Revista Quatro Rodas | Editora Abril)

Em 1988, compramos o tal carro de sucesso, numa versão duas portas com motor 2.0 a álcool. Na última revisão dos 50 mil km, estranhamos quando a concessionária disse que o motor havia sido praticamente retificado, com todos os custos bancados pela fábrica, por conta da garantia. Segundo a autorizada, constataram um ruído interno e, para evitar problemas mais sérios, fizeram a retífica para evitar dores de cabeça futuras. Na época, nós da revista, elogiamos a atitude da concessionária, que foi correta ao resolver um problema sério que estava por vir.

Claro, quando desmontamos o carro no final do teste, ao redor dos 53 mil km, tudo estava absolutamente novo. Na última medição de desempenho na pista de testes, o carro da nossa frota estava muito mais rápido e econômico aos 50 mil km se comparado aos números do primeiro teste, quando zero km. Dessa vez, tudo leva a crer que montaram o motor “no capricho”, com as melhores peças disponíveis. Só para que se tenha uma ideia, a aceleração de 0 a 100 km/h baixou em 1 segundo, a velocidade máxima aumentou 5 km/h e o tempo das retomadas de velocidade de 40 a 100 km/h em 5ª marcha baixou cerca de 2 segundos. Ou seja, o carro estava um verdadeiro canhão no final do teste. No mínimo, estranho…

Segundo exemplar para tirar a prova

Para obter esses resultados tão melhores, o motor precisaria ganhar, pelo menos, 20 cv. E cavalos de potência não costumam surgir do nada. Para sanar as dúvidas, a revista, na época, comprou outro carro 0 km semelhante, porém com quatro portas, cerca de 1 ano depois, e refez o teste. Normalmente, demorávamos de 10 a 12 meses para rodar os 50 mil km com cada carro, e o veículo testado trafegava por todo o país, de norte a sul e de leste a oeste.

Pois bem. Encerrado o teste com o segundo carro, de quatro portas, aos 50 mil km, a mesma surpresa desagradável na hora da desmontagem: seu motor não estava com as peças na medida standard (STD), e já se encontravam na fase de primeira retífica, com 0,25 mm. Ou seja, durante alguma das revisões programadas, a concessionária retificou o motor e ficou bem quietinha. Não contou nada ao consumidor, no caso nós, Quatro Rodas. Já estávamos aí no final de 1989, e o carro desmontado seria apresentado ao leitor em uma das últimas edições do ano.

Depois de pesquisarmos, desconfiamos que o motor havia sido retificado na revisão dos 40 mil km, quando a concessionária demorou 1 semana para nos devolver o carro. Imaginem uma revisão em que a revenda larga o consumidor a pé por sete dias para fazer os serviços programados no manual de manutenção? Mais uma vez, bem estranho!

retífica chevrolet monza classic 1987
Segundo exemplar adquirido pela publicação tinha quatro portas, como exemplar da foto, e também foi retificado sem consentimento dos proprietários (Foto: GM | Divulgação)

O fato é que a desmontagem mostrou que aquele motor já havia sido retificado, em absoluto segredo, sem que nada fosse contado ao dono do carro. E, com isso, uma vida daquele 2.0 já havia sido perdida, já que a retífica seguinte seria a de 0,50 mm, a última aceitável. Em tempos em que era normal um motor durar de 80 a 100 mil km, era muito sério saber que ele tinha perdido uma retífica de sua vida útil aos 40 mil km.

Enquanto isso, a fabricante de origem norte-americana insistia em afirmar que aquele motor não havia sido retificado, dizendo que era comum utilizarem componentes em medidas 0,25 mm nos carros da linha de produção. Segundo eles, mesclavam peças standart e com medida de retífica em veículos 0 km, algo chocante. Isso significava que o consumidor, sem saber, poderia estar adquirindo um carro cujo motor tinha uma retífica disponível a menos, já que a marca “errava” as medidas de usinagem na fabricação do motor. Não sei se era pior o motor ter problemas de durabilidade, ou a marca afirmar que vendia motores novos com medida de retífica.

Não satisfeita, a equipe da revista, da qual eu fazia parte, contatou a marca alemã que era dona do projeto original daquele motor. Queríamos saber se era normal utilizar peças com medida 0,25 mm na linha de produção, em motores novos. De bate e pronto, nos responderam que peças fora da medida standard eram imediatamente descartadas e sucateadas. Jamais deveriam ser instaladas em um carro zero km. Mostramos ao consumidor a carta da marca alemã com essas afirmações, totalmente contrárias as da marca norte-americana. Essa ficou em absoluto silêncio.

Diz o ditado popular que “quem cala, consente”. Assim entendemos que o tal fabricante de origem norte-americana entendeu a mensagem. Simples mentiras não resolveriam o problema sério de durabilidade do seu motor 2.0, independente do motivo. O fato é que, em 1991, repetimos o teste já com o carro reestilizado e equipado com injeção eletrônica monoponto: problema resolvido. No final do teste, desmontado, todas as peças estavam na medida standard e em estado aceitável para a quilometragem. Nenhuma surpresa negativa.

Os problemas dos motores 2.0 do final de 1986 até 1989 nunca foram abertamente divulgados. Mas, o importante é que, a partir daí, eles não apresentavam mais os tais problemas. De quebra, ainda eram bons de desempenho e consumo, seja na versão a gasolina ou na variante a etanol. Bem provavelmente, seguiram as especificações do projeto alemão, sem perda de performance ou menor vida útil. Graças ao elevado conhecimento e aos critérios rígidos de análise da equipe da revista na época, as “pegadinhas” da marca norte-americana não funcionaram. História da nossa indústria automobilística…

Na próxima semana, não perca a história do primeiro popular 1.0 que veio para os testes com motor envenenado!

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1 Comentário
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Daniel Bueno 20 de outubro de 2024

Sempre fomos considerados “mercado de segunda categoria” pelas quatro grandes montadoras. Esse é um exemplo clássico do desdém deles para com o consumidor brasileiro. Podemos pontuar também que nas décadas de 70, 80 e 90 os lançamentos europeus e norte-americanos demoravam anos para chegar em terras tupiniquins e isso quando chegavam, pois na maioria das vezes vinham versões “peladas” ou tropicalistas que nada lembrava os modelos lançados lá fora. Hoje vivemos novos tempos com um bom acesso a informação e eles já não conseguem ludibriar o consumidor com antigamente.

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