“London to Brighton”, com fogo no rabo
Reproduzo matéria que fiz há 20 anos sobre uma "corrida" antigomobilística com Nasser, brilhante e respeitado jornalista do setor, falecido semana passada
Reproduzo matéria que fiz há 20 anos sobre uma "corrida" antigomobilística com Nasser, brilhante e respeitado jornalista do setor, falecido semana passada
Não me esqueço do dia em que recebi uma foto distribuída por uma agência inglesa de notícias com um carrinho muito antigo, do tipo “horseless carriage” (carroça sem cavalo). Foi na década de 70, eu já escrevia sobre automóveis e contaminado pelo perigoso vírus do antigomobilismo. Voltando à foto, ela mostrava dois provectos senhores vestidos à caráter e cruzando com toda a dignidade uma ponte de Londres, logo depois da largada da “London to Brighton”. Apesar da paixão pelos antigos, a corrida inglesa era uma coisa tão, mas tão distante, que me resignei a publicar a foto e esquecer o assunto.
Mas, de lá para cá, nem eu perdi a paixão, nem a corrida deixou de ser promovida. Afinal, ela existe desde 1896 e foi realizada pela primeira vez para comemorar o fim do “red flag act” a lei da bandeira vermelha. Até então, para circular nas ruas das cidades inglesas num carro com motor, tinha que ir alguém a pé, alguns metros à frente, carregando uma bandeira vermelha (ou lanterna) para avisar do “perigo” que vinha logo atrás. Além da extinção da bandeira, a velocidade máxima subiu de 4 para 14 milhas por hora! E daí surgiu a primeira “London to Brighton”, que existe até hoje e só inscreve automóveis produzidos até 1904.
Um dia, há quase 20 anos, o José Roberto Nasser, de Brasília, amigo com os mesmos vícios de jornalismo e antigomobilismo, veio com o assunto “London to Brighton”: apesar da dificuldade de arrumar uma vaga (são apenas 500), ele tinha um convite do Royal Automobile Club, organizador do evento. Mas faltava o carro.
Umas semanas depois eu conversava com o Cees Hermann, então presidente da Peugeot do Brasil e ele casualmente me contou que a marca comemorava, naquele ano, o centenário do primeiro automóvel desembarcado no Brasil: o Peugeot do Santos Dumont (Henrique, irmão do Alberto). Aí eu “joguei verde”, e sugeri que a empresa mandasse um carro semelhante para fazer a “London to Brighton”, com uma equipe de brasileiros. E colhi maduro: mas quem iria fazer isso, ele perguntou…
E então, com o indispensável apoio da Michelin (o leitor tem ideia de como conseguir pneus originais para um Peugeot 1901?) lá fomos o Nasser e eu para a Inglaterra, pilotar no mais famoso raid de carros antigos do mundo, que já foi tema até de filme inglês (“Genevieve”). O carro, um Peugeot Typ 26, foi enviado do museu da Peugeot em Sochaux para Londres, devidamente acompanhado por Guy Jacquemont, o mecânico que o restaurou.
A prova foi em 1º de novembro de 1998. É uma corrida emocionante, embora não tenha nada de corrida: os carros largam a partir das 7h30 no Hyde Park e tem um horário mínimo e máximo para chegar a Brighton, no litoral sul da Inglaterra. Nosso Peugeot era o número 75 e fomos uns dos primeiros a largar. Às 14h, ou seja seis horas, 60 milhas (cerca de 100 km) e duas rápidas paradinhas depois, lá estávamos chegando em Brighton, bem dentro do tempo estipulado pela prova.
É uma grande festa: em todo o trajeto são dezenas de milhares de pessoas, crianças, velhinhos, velhinhas, todo mundo dando adeus, te cumprimentando e acenando. Como disse o Nasser, a gente não fica cansado de dirigir, mas de acenar e sorrir. Além disso, outro espetáculo são as centenas de carros antigos estacionados nas margens das estradas. A impressão que se tem é de que todos os clubes de antigos marcam encontros no domingo da corrida: tem clube de MG, Austin, Morgan, Rolls, Jaguar, Mercedes, Caterham e vários outros.
E a chegada? Outra festa: milhares de pessoas em Brighton, rádio, televisão, todos amontoados em Madeira Drive, ao lado do cais. E, dos 501 que largaram, chegaram cerca de 400. E destes, pouco mais de 300 dentro do horário. Classificação, não tem: segundo os próprios ingleses, quem larga é vitorioso. Quem chega é herói.
O Peugeot 1901 é um verdadeiro charme. Com seus dois bancos “vis-a-vis” (frente a frente), motor traseiro de dois cilindros, 1.056 cm3, potência de apenas 3 hp e transmissão por corrente. A caixa de marchas é ótima: mais ou menos como nas motos, o esquema não é um “H”, mas direto, uma depois da outra. A mais próxima do motorista é a primeira, depois a segunda e terceira. Aí vem ponto-morto e, por fim, a ré. Com um probleminha: as engrenagens não têm anéis sincronizadores, de modo que só dá para cambiar (com o carro andando) – para frente. E, como reduzir? Só parando a máquina, engatando a primeira e começando tudo de novo.
O Guy Jacquemot, além de levar o carro para Londres, ainda nos acompanhou e avisou que não tinha jeito de reduzir de terceira para segunda, nem para primeira. Só com o carro parado. É claro que, tanto eu como o Nasser acabamos pegando o “jeitinho” e no final já estávamos (para contido desespero do Guy) reduzindo com o carro em marcha! Aliás, o mecânico quase não teve o que fazer durante o trajeto. Das duas vezes que o motor começou a falhar, uma era a trava de uma mola de válvula. A outra, para troca do gás. Se o leitor pensou que o carro anda a gás, ledo engano: é à gasolina mesmo. E o gás?
Claro que o Typ 26 não tem arranque elétrico, só pega no “feijão” (manícula…). Até aí, nada de mais. Mas não tem vela, também. Mas, como explode a mistura dentro do motor, sem faísca?
Ah…aí vem o gás: eram dois maçaricos fora do motor, alimentados pela própria gasolina, que tornavam incandescentes duas barras horizontais de metal lá no alto do cilindro. Para reduzir o risco de explosão, Guy explicou que foram adaptados dois pequenos botijões de gás, do tipo “liquinho”, eliminado o circuito adicional de gasolina. Como as barras entram cabeçotes adentro, são responsáveis pela ignição da mistura. Ou seja, não ficam incandescentes só ao ligar o carro, mas o tempo todo, substituindo as velas de ignição!
No frigir dos ovos, Nasser e eu dirigimos o Typ 26 durante as 60 milhas e seis horas do “London to Brighton” com dois maçaricos ligados sob os respectivos traseiros. Literalmente com fogo no rabo! Mas, segundo nosso mecânico francês, os liquinhos reduziram muito o risco de explosão… Um alívio, não?
Confira a galeria de fotos:
Fotos Reprodução
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Bela historia belas fotos mas, sobretudo linda homenagem ao amigo que foi um pouco cedo demais !
Não há o que comentar. Apenas se emocionar.
Grande Roberto Nasser com seu pioneirismo, conhecimento e estilo particular e inconfundível de escrever.